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Por que precisamos de um novo fórum para o debate público sobre biotecnologia

por Marcelo Leite

É impressionante que uma sociedade democrática como o Brasil não tenha ainda sido capaz de decidir, após mais de cinco anos de intenso debate, se vai ou não adotar a modificação genética de culturas agrícolas como parte de seu esforço de desenvolvimento social e econômico.

A principal razão desse impasse é a profunda polarização da questão no Brasil –similar à situação em muitos países desenvolvidos, como o Reino Unido. O resultado é que, mesmo sendo o Brasil o maior exportador –e o segundo maior produtor– de soja, apenas 4% da área plantada com essa cultura no país foi tomada pela variedade geneticamente modificada (GM) da Monsanto, resistente a herbicida.

Houve muitas idas e vindas na Justiça, desencadeadas pela decisão de 1998 da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) de conceder uma licença para o plantio em escala comercial da soja GM. Essa licença foi questionada nos tribunais por organizações não-governamentais ambientalistas, como o Greenpeace, e por defensores dos direitos dos consumidores, como o Idec. Não há ainda decisão final da Justiça.

Também houve farta discussão nos círculos políticos. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva autorizou excepcionalmente a comercialização da soja GM, por meio de medidas provisórias (um tipo de decreto presidencial). Sua administração apresentou ainda um projeto para atualizar a Lei de Biossegurança, de modo a substituir legislação ultrapassada de 1995. O projeto ainda tem de ser aprovado pelo Senado.

Apesar disso, o debate permanece marcado por uma perspectiva simplista, na qual as pessoas são classificadas ou a favor ou contra a nova tecnologia, sem meio termo. Trata-se de uma situação pela qual muitos jornalistas são parcialmente responsáveis. Mas é também uma situação que eles –em princípio– poderiam contribuir para evitar, se fossem capazes de entender o seu papel menos em termos de reforçar essa polarização, por meio de uma cobertura previsível dos dois campos opostos, e mais em termos de fornecer apoio para um debate informado.

A polarização é excessiva. De um lado, o establishment científico e político parece convencido de que a biotecnologia é uma condição necessária para o desenvolvimento. No lado oposto, grupos ambientalistas e outras ONGs ainda podem contar com um público receptivo para sua posição anti-OGMs. Com base nela, mostram-se capazes de disseminar no público a desconfiança diante da biotecnologia, fazendo com que se associem alimentos transgênicos com a gestação de monstros, por obra da engenharia genética.

De acordo com uma pesquisa nacional de opinião conduzida pelo Ibope com 2.000 pessoas, em dezembro de 2002, somente 37% entre elas haviam ouvido falar de alimentos transgênicos, e 61% nunca haviam ouvido falar. Após ouvir uma explicação do que significava “transgênico”, 71% afirmaram que prefeririam não os consumir. Parece que a simples noção de “transgênico” é o bastante para desencadear uma reação negativa. Como resultado, 92% declararam que deveriam ser rotulados. (A pesquisa havia sido paga por uma aliança de ONGs chamada Campanha por Um Brasil Livre de Transgênicos.)

Houve quem tentasse explicar essa situação culpando a ignorância do púbico brasileiro, assinalando que ele parece recusar aquilo que não consegue entender. Mas a questão não é assim tão fácil de resolver. Inúmeras campanhas de relações públicas e de propaganda foram lançadas pelas empresas de biotecnologia, mas todas falharam na tentativa de alterar o panorama anti-OGMs. Não é somente culpa da falta de informação, parece.

Uma razão fundamental da incapacidade de decidir a questão sobre se culltivares transgênicos devem ou não ser plantados no Brasil repousa no fato de que essas campanhas apostam todas as suas fichas na mesma polarização. Ao fazê-lo, tentam arrastar cidadãos e jornalistas para um dos campos opostos: ou você está a favor da biotecnologia, e portanto do lado da humanidade e do progresso, ou você está contra ela, sem posições intermediárias possíveis.

Em meio a essa polarização exagerada, basta entreter dúvidas sobre os OGMs para ser automaticamente identificado, pelos defensores dos alimentos transgênicos, como um guerreiro das forças do mal, alguém que impede cientistas de eliminar o maior fardo da humanidade, a fome. Essa é a visão mais comum entre pesquisadores e representantes da indústria.

Inversamente, também tem havido uma reação igualmente intensa da parte de ativistas ambientais contra aqueles jornalistas que tentam desenvolver uma visão independente e calcada na ciência sobre os temas da biossegurança, baseando suas reportagens em pesquisa auditada, e não em idéias preconcebidas sobre “progresso” –ou “atraso”– científico.

Alguns dos jornalistas, por exemplo, levantaram questões sobre a tática dos críticos dos OGMs de aventar vagos riscos teóricos –tais como o dano potencial à saúde humana–, perguntando se ela não teria por intenção real a cobertura de objeções éticas à biotecnologia. Ou, então, se não era enganoso falar em termos gerais de riscos induzidos pela biotecnologia, como se todos os produtos GM envolvessem riscos similares.

Essas posições contra e a favor dos OGMs se cristalizaram em torno de atitudes extremas que eu rotularia como “fundamentalistas”. Há muitas maneiras de ser fundamentalista, entre elas ser simplisticamente pró-ciência ou anticiência. A solução não é atiçar uma Guerra Santa entre elas (o que muitos repórteres acabam por fazer). Em vez disso, ela exige um compromisso com uma noção forte de esfera pública esclarecida, na qual cada cidadão pensa e decide com a própria cabeça, usando o máximo de informação confiável disponível.

O problema é que a opinião pública é imperfeita em muitos países, se não em todos. É hora de revigorá-la por meio da abertura de um terreno comum, no qual um debate livre e renovado possa ter lugar, em que todos os interessados –respeitadores da independência e da tolerância– comecem a ponderar fatos, interpretações e argumentos por seu valor intrínseco, e não por sua origem.

Os líderes da comunidade científica global deveriam dar um passo para começar a gerar e a reunir informação confiável sobre biotecnologias, propondo experimentos similares aos de grande escala que foram realizados no Reino Unido, mas que abarquem um espectro mais amplo de ambientes naturais, culturais e socioeconômicos. A única condição para eles seria não terem se engajado de modo proeminente nas campanhas a favor ou contra a biotecnologia.

A informação produzida nesses estudos independentes teria então de ser levada ao público de cada país, de preferência na forma de conferências de consenso ou reuniões abertas, de modo a alcançar pessoas comuns. Pode-se começar por avaliar os sucessos e fracassos da iniciativa britânica GM Nation, por exemplo.

Outra tarefa importante é assegurar-se de que a informação chegue àquelas pessoas em posição de transformar opiniões e juízos em fatos sociais, como legisladores e magistrados. A experiência do Instituto Einstein para Ciência, Saúde e Tribunais dos Estados Unidos (EINSHAC, na abreviação em inglês) pode ser útil, nesse sentido.

Dado que muitos de nós –cientistas sociais ou naturais e jornalistas– tiveram alguma educação  em pesquisa empírica no passado, estamos condenados a fazer aquilo que fomos treinados a fazer: aprender com a experiência, levantar novas questões ou reformulá-las de forma mais produtiva e, acima de tudo, buscar respostas inesperadas e inovadoras.

Jornalistas, sozinhos, não seriam capazes de desbravar esse novo campo, que um dia talvez se torne um terreno comum e neutro. Mas decerto podem dar alguns passos nessa direção, começando por evitar aquelas fontes que nada têm para acrescentar de novo ao debate. Será que não há cientistas praticantes por aí que recusem o papel de militantes pró-biotecnologia? Talvez esteja na hora de começarmos a procurar com maior afinco por especialistas que não tenham interesses em jogo. Pode ser até que encontremos pessoas nas ONGs ou em torno delas que se disponham a corroborar suas afirmações com dados confiáveis, auditados e publicados. Acima de tudo, nós, jornalistas, precisamos insistir em mostrar que nenhuma instituição –ao menos em meu país– se encontra seriamente engajada em desarmar a armadilha da polarização em que fomos aprisionados.

Se a situação presente se mantiver inalterada, restará somente espaço para a persistente falsificação do diálogo que, ao menos no Brasil, conduziu a biotecnologia a um impasse legal e de regulamentação.

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Marcelo Leite é editor de Ciência do jornal brasileiro Folha de São Paulo.

Fonte: SciDev.Net - 06 August 2004
http://www.scidev.net/ms/sci_comm/index.cfm?pageid=306