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Faxina Arterial
Composto
desenvolvido no Rio Grande do Sul dissolve placas que obstruem vasos sangüíneos
Por Dinorah
Ereno e Ricardo Zorzetto
Às vezes nossas artérias lembram canos velhos de
metal, que com o tempo enferrujam e acumulam detritos até entupirem por
completo. É assim ao menos com a mais freqüente das doenças que danificam os
vasos sangüíneos, a aterosclerose, associada a 17 milhões de mortes no mundo por
ano. Marcada pela formação de placas de gordura que impedem a passagem do
sangue, a aterosclerose em geral é fatal quando afeta as artérias do coração ou
do cérebro, órgãos que resistem apenas poucos minutos sem oxigênio. Parece
paradoxal, mas pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS) descobriram que um tipo de hormônio produzido pelo organismo com
estrutura similar à das gorduras, as prostaglandinas, pode auxiliar no
tratamento e até mesmo na prevenção desse problema.
Utilizando prostaglandinas, a equipe do bioquímico Paulo Ivo Homem de
Bittencourt Júnior produziu um composto que, em experimentos com camundongos,
mostrou-se capaz de dissolver as placas de gordura que se acumulam nas artérias
- os ateromas, como dizem os médicos. Essa formulação, que recebeu o nome
provisório de LipoCardium, também impediu a formação de placas, conseqüência do
consumo de alimentos gordurosos, do tabagismo e do sedentarismo.
Caso se demonstre a segurança e a eficácia desse composto nos futuros testes com
coelhos, cães e seres humanos, é possível que em até dez anos chegue às
farmácias um medicamento novo para evitar a formação das placas que impedem a
circulação normal do sangue.Fabricadas em pequeníssimas quantidades no interior
das células, as prostaglandinas formam uma vasta família de moléculas pequenas -
cada uma delas composta por uma seqüência de apenas 20 átomos de carbono -, com
ações distintas nas diferentes partes do corpo, que vão do controle da pressão
arterial e da ativação do centro cerebral da dor à indução ao parto.
Entre as 36 prostaglandinas naturais conhecidas, o pesquisador da UFRGS
selecionou as ciclopentenônicas (CP-PGs, na sigla em inglês), em cuja estrutura
cinco dos 20 átomos de carbono se unem formando um anel. Não foi uma escolha ao
acaso. Durante seu doutoramento, orientado pelo bioquímico Rui Curi, da
Universidade de São Paulo, Homem de Bittencourt passou um ano no laboratório da
bióloga Maria Gabriella Santoro, da Universidade de Roma, Itália. Foi ela que
descobriu uma propriedade fundamental dessas prostaglandinas: uma vez no
interior das células, essas moléculas impedem dois fenômenos ligados ao
surgimento do ateroma, a inflamação e a multiplicação celular.
É mais fácil entender o valor desse composto com uma rápida explicação de como
se formam essas placas de gordura nas paredes das artérias. A hipertensão
arterial crônica, a ingestão de alimentos ricos em gorduras ou o consumo de
cigarros, por exemplo, produzem lesões imperceptíveis no endotélio, a camada de
células que reveste o interior das veias e artérias. É um efeito restrito, mas
que ecoa pelo organismo. Nas células danificadas, um sinal químico induz a
produção de proteínas típicas da inflamação, que, expostas na superfície
celular, servem como um cartaz luminoso, indicando ao sistema de defesa: "Há
problemas por aqui!". Células de defesa se deslocam até a região afetada dos
vasos sangüíneos e destroem as células doentes.
Mas o sinal químico que dispara a produção dessas proteínas também indica às
células do endotélio que elas devem se multiplicar. As novas células do
revestimento das artérias passam então a envolver as células de defesa, que não
param de chegar à região do ferimento. Não fosse o bastante, as moléculas de
gordura em excesso no sangue - e não aproveitadas pelo organismo na produção de
energia - aderem a esse bolo celular que cresce para o interior das veias e
artérias. Eis o ateroma, que não é formado apenas por moléculas de gordura como
normalmente se imagina. Há também átomos eletricamente carregados (íons) de
cálcio, que se depositam sobre o ateroma e tornam a artéria menos elástica e
mais propensa ao rompimento.
Com as prostaglandinas ciclopentenônicas, imaginou Homem de Bittencourt, em tese
seria possível travar o gatilho que dispara a formação do ateroma e eliminar o
mal antes de seu aparecimento. É que essas moléculas se ligam a uma
proteína-chave no processo de multiplicação celular e inflamação, a enzima
I-kappaB quinase ou simplesmente IKK. Como um goleiro que intercepta a bola a
caminho do gol, as prostaglandinas se atracam à IKK e impedem o envio do sinal
para as células multiplicarem e o sistema de defesa entrar
em ação. Há um efeito benéfico extra: as CP-PGs auxiliam no
reparo de proteínas danificadas pela lesão na célula.
Embalagem segura
Era a escolha perfeita. Mas faltava encontrar uma forma de levar as
prostaglandinas ciclopentenônicas até o ateroma. É que, embora sejam
naturalmente produzidas pelo organismo, essas moléculas não podem ser injetadas
diretamente no sangue. Por causa de sua potente ação antiproliferativa, se
lançadas na circulação sangüínea, essas prostaglandinas causariam os mesmos
efeitos indesejados da quimioterapia convencional com medicamentos anticâncer,
como queda de cabelo, problemas intestinais, além de um intenso mal-estar geral.
"A solução foi embalar as prostaglandinas em lipossomos, cápsulas de gordura
produzidas artificialmente, com uma estrutura semelhante à de uma bola de
futebol", explica Homem de Bittencourt.
Mas mesmo o uso de lipossomos não garantia a ação das prostaglandinas no local
certo. Como essas cápsulas gordurosas apresentam a mesma carga elétrica que as
células do endotélio, seriam repelidas pelas paredes das artérias e
permaneceriam no sangue até as células de defesa as consumirem. Ainda era
preciso encontrar um modo de conduzir as cápsulas ao local da lesão.A equipe da
UFRGS só encontrou a saída quando notou uma peculiaridade das células
danificadas do endotélio: elas apresentam em sua superfície uma proteína que não
é encontrada em nenhum outro lugar do corpo. São as moléculas de adesão
vascular, o tal cartaz luminoso que atrai a atenção das células de defesa e ao
qual elas se ligam. O pesquisador gaúcho teve então a idéia de acrescentar aos
lipossomos carregados de prostaglandinas uma proteína que se encaixa
perfeitamente às moléculas de adesão vascular.
Ação pontual
Resultado: os lipossomos mergulhados no sangue enroscam nas moléculas de adesão
ao passarem pelo ferimento e, como o cavalo recheado de guerreiros que os gregos
ofertaram aos troianos, são absorvidos pelas células avariadas. Assim, as
prostaglandinas atuam apenas no ponto desejado, sem gerar os efeitos
indesejáveis. Eis a principal diferença entre o composto desenvolvido pelo grupo
do Rio Grande do Sul e os outros medicamentos usados no combate à aterosclerose
- as estatinas, por exemplo, atuam de outra forma e reduzem o risco de
aterosclerose porque inibem a produção de colesterol em especial no fígado.
"Além de usado para tratar a aterosclerose, o composto à base de prostaglandinas
talvez possa prevenir a formação dos ateromas nos casos em que há histórico
familiar de colesterol alto", diz Homem de Bittencourt, que já obteve o registro
de patente da nova formulação no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI).
Na primeira bateria de testes, o composto da UFRGS mostrou resultados
animadores. Experimentos com camundongos geneticamente alterados para
desenvolver aterosclerose e alimentados por quatro meses com uma dieta rica em
gorduras mostraram que o composto à base de prostaglandinas eliminou as placas
de ateroma após duas semanas de uso diário - os animais que não receberam a
formulação, em geral, morreram em 15 dias. Segundo o pesquisador, esse resultado
- claro, guardadas as devidas proporções - corresponderia ao caso de uma pessoa
com 80% das artérias do coração bloqueadas que se curaria da doença após um ano
e meio de tratamento com o composto.
De acordo com Homem de Bittencourt, uma indústria farmacêutica nacional, cujo
nome se mantém em sigilo, atualmente negocia com o escritório de transferência
de tecnologia da UFRGS para tornar o composto à base de prostaglandinas de fato
em um novo medicamento. É uma parceria fundamental, uma vez que os testes
necessários para comprovar a eficácia e a segurança do composto devem custar
cerca de R$ 5 milhões, quase oito vezes mais do que já se gastou. Dificilmente
as instituições que apoiaram essa pesquisa até agora - o Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado do Rio Grande do Sul (Fapergs) e a própria UFRGS - teriam condições de
financiar, sozinhas, a etapa de desenvolvimento desse limpador de artérias.
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Fonte:
revistapesquisa.fapesp.br |
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