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Criatividade e corpo na terceira idade: Imagem e emoção Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UnATI/UERJ
As oficinas deram inicio em 1995 e estende-se até os dias de hoje. Em atividade permanente no centro de convivência da Unati, na area de ensino.
Por Gabriella Rangel e Cristie Moraes Campelo*
Ao iniciarmos este artigo surgiram várias questões e inquietações que vamos dividi-las com você leitor. Como o idoso pode ser criativo e fazer o corpo criativo? Sem o olhar criativo, o que aparece? O corpo decadente, o “anticorpo”? (Nietzsche) - Que corpo é este? De que se constitui um corpo, além de órgãos, células, enfim, além do orgânico e do físico? - também de imagens, silêncios, dores, odores, angústias...? Pode o idoso desnudar o seu corpo ou tê-lo nu na dignidade, na coragem, na relação, no afeto? Estaria o ato criativo deste corpo vinculado ao prazer, à raiva, enfim, às ações e reações do humano? Onde está a censura neste “anticorpo”? Nos “anticorpos da vida?”. Na alienação das possibilidades deste corpo? Como o idoso sente, pulsa e reverbera este “corpo sem órgãos?” (Nietzsche). Com isso ele pode se apossar de sua autonomia, de sua sexualidade, de sua potência?
Essas questões nos fizeram pensar e repensar sobre o nosso trabalho na Universidade Aberta da Terceira Idade - UnATI através das oficinas: O Cinema na Relação, Espaço de Biointegração - Terapia Psicomotora e Movimento Expressivo - A Emoção através do Movimento Plástico e Dramático. E de que maneira poderíamos, a partir dessas questões, elaborar este artigo, sem a pretensão de respondê-las; aliás, não teríamos todas as respostas, mas com o desejo de ao longo do texto, buscar uma reflexão e trazê-la para você e, juntos, refletirmos, para chegarmos a alguma conclusão, mas que, ao menos, esse pensar nos crie possibilidades críticas e transformadoras.
Para começarmos nossa reflexão voltemos ao tema do artigo para falar um pouco sobre Criatividade. No seu livro A Coragem de Criar, Rollo May coloca a coragem como condição essencial ao ato criativo. Outra condição básica ao ato criativo, continua ele, é a liberdade. “Qualquer pessoa pode escapar à neurose, e mais grave, à psicose, através da capacidade de criar”, diz Rollo May.
Em nosso trabalho com o idoso a Criatividade é estimulada o tempo todo como uma possibilidade para o indivíduo se potencializar. Trabalhamos com as imagens, através de cenas de filmes e conforme o que as imagens despertam no indivíduo as emoções que surgem são “olhadas” e trabalhadas através de expressões e movimentos no corpo. Trabalhamos com o sensório-motor deste indivíduo. Vimos com a nossa experiência que, por isso, essa coragem de que fala Rollo May vai se criando no corpo do idoso e também vai surgindo uma sensibilidade e uma capacidade dele ouvir seu próprio corpo, estabelecendo aos poucos a sua saúde emocional. Rollo May diz: “a Criatividade ocorre sempre num ato de encontro e deve ser compreendida tendo como centro este encontro”. Acreditamos neste ato de encontro do idoso consigo próprio através de seu corpo, de suas emoções, de suas expressões, de seu movimento, que poderá levá-lo a estar mais consciente em relação a si, ao outro e ao mundo. Este é o nosso trabalho e a nossa vivência com este indivíduo que está buscando um encontro, o encontro com a saúde.
Para falarmos de corpo nos vêm à idéia “vários corpos”, ou instâncias deste corpo, pois ele (corpo) não é apenas organismo biológico, ou seja, dialeticamente falando o organismo não é corpo. Entretanto, no campo da psicomotricidade, ciência que sustenta a prática do nosso trabalho com o corpo; ficamos atentas não a um corpo em movimento, mas num humano com seu corpo em movimento. Isso em si transforma o corpo num lugar de acontecimentos e faz com que “olhemos” para ele (corpo) em várias dimensões e possibilidades diferenciando-o em três momentos: no real, no simbólico e no imaginário, com seus traços e marcas da linguagem, pois com todas estas instâncias o “corpo” passa a residir não só como um conjunto de músculos e nervos, mas também com uma posição inscrita pelo desejo do Outro na cultura e na sua história de vida. Como nossa atuação na psicomotricidade se estabelece na terapia psicomotora, centramos nosso olhar a partir da comunicação e da expressão do corpo, no intercâmbio e no vínculo, na relação com o grupo e na singularidade de cada idoso.
Todo nosso olhar implica no resgate desta singularidade do “corpo” como já foi dito anteriormente, carregado de todas as suas especificidades. Falamos então de “corpo humano”.
Segundo Esteban Levin “é o desejo que alude a uma falta no corpo, que faz dele um recorte a respeito do qual pode apenas informar uma repetição significante. O interessante deste ponto é que não há tipificação possível deste recorte singular, já que o Outro recorta o corpo numa posição de (UNO) impossível de repetir no plural -o que confere ao corpo a mesma singularidade do indivíduo. Por este percurso singular podemos enunciar: que o corpo é transferência referida a uma rede significante, rede histórica que o faz existir”. E é pensando dentro desta perspectiva que estamos nos referindo ao corpo, ou melhor, ao “corpo humano” e, mais ainda, ao “corpo humano” idoso. Idoso no nosso entender não só inscrito no tempo cronológico, mas por este tempo atemporal, significativo, vivido e carregado de lembranças. Tão singular é este corpo como qualquer corpo é singular, é humano, dialético, finito e infinito, portanto aberto a novas possibilidades de construção e existência. Estamos falando de um corpo criativo. O ato criativo é fundamental do nosso ponto de vista, pois, trabalhamos com deslocamentos e, deslocar é criar novos caminhos, abrir “portas” e “janelas” para este corpo. Esta atitude criativa está na relação que estabelecemos com estes corpos idosos, no momento em que eles apresentam uma topografia sensitiva, uma topografia erógena, uma topografia “sociocultural” (Lapierre e B. Aucouturier).
Os múltiplos contatos e possibilidades de construção que podem se estabelecer entre dois corpos ou mais; tem significados diferentes e resultam numa comunicação nova e criativa; detonando uma busca mútua, de novas experiências corporais. A. Lapierre nos traz com clareza as nuances destes contatos, de suas posturas e do quão criativo, revelador e transformador pode ser o corpo nos jogos relacionais e expressivos. “Criar é inaugurar, é introduzir, é dar entrada, é por alguém em um novo lugar” (Esteban Levin).
Para continuar a falar do corpo e das imagens, trouxemos algumas definições de autores que ao longo de suas vidas “olharam” e “olham” para o corpo em diferentes sentidos: educadores, terapeutas, filósofos, artistas. Existem ainda muitos autores que entraram nesta área, mas escolhemos àqueles que pesquisamos e consultamos para o desenvolvimento deste artigo, da nossa prática de trabalho com a terceira idade e que nos ajudaram ao conhecimento do nosso próprio corpo.
Ao final dessa reflexões a respeito do corpo trazemos um autor-filósofo e nos deteremos um pouco mais nele, juntamente com outro filósofo, F. Nietzsche, que nos dão a sustentação filosófica para o nosso trabalho acontecer com os grupos da terceira idade. Trata-se de Gilles Deleuze. A nossa pesquisa e a nossa prática enquanto terapeutas têm se baseado, além dos autores já citados, na psicomotricidade relacional e nos conceitos, estudos e pensamentos desses dois filósofos. Trazemos aqui um conceito de corpo apresentado no livro Nietzsche e a Filosofia, de G. Deleuze:
“Toda força está em relação com outras, quer para obedecer, quer para comandar. O que define um corpo é esta relação entre forças dominantes e forças dominadas. Toda relação de forças constitui um corpo: químico, biológico, social, político. O corpo é fenômeno múltiplo sendo composto por uma pluralidade de forças irredutíveis; sua unidade é a de um fenômeno múltiplo. Unidade de Dominação”.
Nesse livro Deleuze apresenta os conceitos de Nietzsche que em um corpo, as forças superiores ou dominantes são ditas ativas, as forças inferiores ou dominadas são ditas reativas. “O que é ativo? Tender ao poder”. Apropriar-se, apoderar-se, subjugar-se, dominar são os caracteres da força ativa. O poder de transformação, o poder dionisíaco, é a primeira definição da atividade. Essa é a energia “nobre” que em Nietzsche é a energia capaz de transformar. Mas não devemos esquecer que a reação designa um tipo de forças tanto quanto a ação, com a ressalva de que as reações não podem ser captadas nem compreendidas cientificamente como forças se não as relacionamos com as forças ativas.
No trabalho desenvolvido com o idoso estamos atentas a essa relação de forças no corpo dele e seus desdobramentos e procuramos levar a ele (idoso) através de movimentos, expressões, imagens, o tomar posse de seu corpo e da sua saúde que possibilite a ele um caminhar para a sua transformação. Nossa atividade é também um trabalho com as imagens (cenas de filmes) e para falar dele com os grupos da terceira idade (trabalhamos com o indivíduo no grupo e na sua relação com o mesmo) trazemos alguns conceitos que G. Deleuze coloca em seu livro: A Imagem - Tempo.
Para Deleuze é inexato considerar a imagem cinematográfica como estando, por natureza, no presente. No seu livro o autor cita que Claudel dizia que a profundidade em Rembrandt, por exemplo, era um “convite a se lembrar” (“a sensação despertou a lembrança e a lembrança, por sua vez, alcança, abala sucessivamente as camadas superpostas da memória”). Deleuze cita Bergson e Merleau - Ponty como dois autores que mostraram como a “distância” e a “profundidade” eram uma dimensão temporal. Bergson, segundo o autor, distinguia dois grandes casos: a lembrança passada ainda pode ser evocada numa imagem, mas esta não serve para mais nada, porque o presente do qual parte a evocação perdeu o prolongamento motor que tornaria a imagem utilizável; ou, então, a lembrança não pode mais sequer ser evocada em imagem, embora subsista numa região de passado, mas o atual presente já não pode alcançá-la. Ora as lembranças “ainda são evocadas, mas não podem mais se aplicar sobre percepções correspondentes”, ora “a própria evocação das lembranças é impedida”.
Deleuze usa ainda no seu livro uma expressão “os lençóis do passado” que são, cita ele, estratos, onde buscamos nossas imagens - lembrança. E, continuando, o autor retorna à distinção bergsoniana entre a “lembrança pura”, sempre virtual, e a “imagem - lembrança”, que não faz mais do que atualizá-la com relação a um presente. Num texto essencial, Bergson diz que a lembrança pura não deve de modo algum ser confundida com a imagem - lembrança que dela decorre, mas se mantém com um “magnetizador” por trás das alucinações que ela sugere.
A lembrança pura é cada vez um “lençol” ou um contínuo que se conserva no tempo. Cada “lençol de passado” tem sua distribuição, sua fragmentação, seus pontos brilhantes, suas nebulosas, em suma, uma idade. Quando me instalo sobre tal “lençol”, duas coisas podem acontecer: ou descubro ali o ponto que procurava que vai, portanto, se atualizar numa imagem - lembrança, mas bem se vê que esta não possui por si mesma a marca do passado, que apenas herda. Ou não descubro o ponto, porque ele está em outro “lençol” que me é inacessível, pertence à outra idade. Bergson ainda cita, segundo Deleuze, o filme “O Ano Passado em Marienbad” de A. Resnais como um filme que é precisamente uma história de magnetismo, de hipnotismo, onde podemos considerar que X tem imagens - lembrança e A não as tem ou tem apenas imagens - lembrança bem vagas, pois não estão no mesmo “lençol”. No cinema, diz Resnais, “algo deve se passar em torno da imagem, atrás da imagem e até mesmo no interior da imagem”.
Em seu livro, Deleuze diz ainda que a tela é a membrana onde se afrontam imediatamente, diretamente, o passado e o futuro, o interior e o exterior, sem distância designável, independentemente de qualquer ponto fixo. A imagem não tem mais como caracteres primeiros o espaço e o movimento, mas a topologia e o tempo. Para Deleuze o cinema não apresenta apenas imagens, ele as cerca com um mundo. Por isso, bem cedo, ele procurou circuitos cada vez maiores que unissem uma imagem atual a imagens - lembrança, imagens - sonho, imagens-mundo. No nosso trabalho utilizamos as imagens muito dentro desses conceitos colocados por Deleuze. Acreditamos que as imagens de filmes atuam no indivíduo como um despertar de uma emoção ou emoções que vão estar ligadas a essas imagens - lembrança, imagens - sonho, imagens do seu mundo, da sua história vivida e, em algum momento, este indivíduo vai se lembrar, se emocionar e se deslocar e isso é um movimento para a vida.
Utilizamos cenas de filmes onde a imagem - lembrança deste indivíduo da terceira idade possa ser um “convite a se lembrar”, porque ele viveu esta cena, se identifica com ela, algo o emocionou, está registrado no seu corpo e na sua história de vida. Concordamos ainda com G. Deleuze quando ele diz que “imagens que mostram que o cinema é o espaço por excelência para a análise das complexas relações entre passado e presente, memória e acontecimento”. A câmara, segundo Deleuze, “funda uma consciência que se define não pelos movimentos que é capaz de captar, mas pelas relações mentais e psicológicas nas quais é capaz de entrar”.
Na nossa vivência percebemos que o idoso é “um carregador de imagens” por excelência e as imagens e os movimentos que produzimos nada mais são do que para reatualizá-los, trazê-los para o presente, dando dignidade a este humano: “Logo, estou vivo”.
A cada encontro que temos com eles é de uma troca muito rica, pois, cada indivíduo ali é único, traz muitas histórias e dentro de uma sala junto com eles presenciamos as emoções que são colocadas com uma autenticidade e uma dignidade surpreendentes. Esta relação que acontece entre nós e eles a cada encontro é mágica.
Nosso elemento criativo de trabalho com o idoso e seu corpo ou o corpo que carrega uma idade é fundamentalmente as imagens. As imagens nos diversos campos do real corporal ao imaginário deste corpo. Atuamos na capacidade expressiva de cada humano singular através da emoção, do movimento, da dança, do cinema e das produções simbólicas do grupo. Assim, a criatividade do nosso trabalho com o idoso está nas produções e nas possibilidades de construção de novas imagens. “O corpo como local simbólico - o outro palco”, como diz A. Lapierre e B. Aucouturier em seu livro Fantasmas Corporais e Práticas Psicomotora.
Os objetos mediadores da relação que utilizamos para abertura deste criativo são as imagens, instrumentos que sustentam as potencialidades do idoso, oferecendo a ele materiais plásticos e ricos que possam auxiliar nesta busca do criativo, nesta busca de um novo lugar no humano. Uma vez, num encontro, ouvimos de um idoso: “Sabem por que estou aqui?” E ele mesmo respondeu: “Para respirar”.
Bibliografia
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* Cristie de Moraes Campello é Licenciada em Comunicação Social e Psicomotricista. Oficina ministrada na UnATI: O cinema na relação. Gabriella de Oliveira Rangel é Psicomtricista, Gerontopsicomotricista - Ver Curriculum Lattes – www.cnpq.br |
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