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A utopia da lembrança

 

Ivan Izquierdo

 

Ciência promete, mas muita água deve rolar antes que uma pílula ajude a memória de gente sadia. Ivan Izquierdo é neurocientista e coordenador do Centro de Memória, do Instituto de Ciências Biomédicas, da PUC do Rio Grande do Sul. Artigo publicado em ‘O Estado de SP’:



Nos últimos anos, avançamos muito na compreensão dos mecanismos da formação, evocação e extinção das memórias. Sabemos quais estruturas nervosas são responsáveis por esses processos no cérebro dos mamíferos, e conhecemos os mecanismos moleculares principais desses processos. Meus laboratórios contribuíram muito para esse conhecimento.


Vários cientistas que participam ou participaram da pesquisa sobre esses mecanismos, impulsionados pela mídia, partiram à procura de medicamentos capazes de melhorar a memória, principalmente nas vítimas da doença de Alzheimer ou outras doenças neurodegenerativas.


O principal sintoma delas é a perda gradativa e persistente da capacidade de formar novas memórias ou de recordar as antigas, por causa da perda também gradativa e persistente de neurônios e suas conexões.


Como as drogas de uso médico levam de
10 a 15 anos para serem aprovadas pelas entidades sanitárias dos Estados Unidos e Europa, às quais nossas autoridades em geral aderem, hoje estão em uso medicamentos que obedecem às idéias sobre os mecanismos da memória de 15 ou 20 anos atrás. Alguns desses fármacos são úteis e possuem um efeito bom sobre a memória dos pacientes com doença de Alzheimer ou outras, similares, como a galantamina e a memantina.


Encontra-se em ensaio clínico uma família de drogas chamada ampaquina, que age estimulando a transmissão nervosa mediada pelo ácido glutâmico, crucial na formação e na evocação das memórias em várias estruturas do cérebro: hipocampo, córtex temporal, córtex parietal, núcleo da amígdala, etc. De todas as drogas ensaiadas até agora no tratamento da doença de Alzheimer, as ampaquinas são as de maior potencial terapêutico.


Obviamente, surgiu o interesse, principalmente nos Estados Unidos, sempre tão competitivos, de utilizar esses ou outros fármacos na estimulação da memória normal; por exemplo, para melhorar o desempenho escolar das crianças, cujos pais têm dinheiro suficiente para comprar esses medicamentos; dos pilotos da força aérea ou dos executivos que devem estar com a mente clara para decidir negócios em países cujo fuso horário é outro.


Como os fármacos atualmente em uso não têm esse efeito (só atuam em casos em que a memória encontra-se lesada, como no Alzheimer), várias empresas menores, muitas delas criadas por ex-neurocientistas, partiram para o estudo de substâncias mais modernas, aquelas que demonstramos que podem estimular seletivamente mecanismos moleculares pontuais envolvidos na formação de memórias, particularmente no hipocampo.


Há vários problemas com esse enfoque. O principal é que o estudo dos múltiplos efeitos de fármacos em potencial, incluindo efeitos tóxicos e bons testes clínicos, não está ao alcance de microempresas nem de indivíduos: seu custo é bilionário, sua pesquisa leva muitos anos, e só estão em condições de fazê-lo as grandes empresas farmacêuticas.


Outro problema é que os sistemas neuroquímicos envolvidos na formação de memórias no hipocampo não agem sozinhos; ao mesmo tempo, outros mecanismos em outras estruturas cerebrais também agem, e também são necessários.


A formação de memórias não está a cargo de uma única área cerebral e de um só mecanismo; está a cargo de muitas estruturas, agindo de maneira orquestrada, e utilizando diversos mecanismos, às vezes agindo de maneira oposta em uma ou outra região do cérebro. Além disso, ao mesmo tempo que se aprendem memórias novas, evocam-se outras relacionadas a elas ou não; e, em muitos casos, ambos os processos são excludentes, porque utilizam mecanismos semelhantes nas mesmas estruturas.


O hipocampo está constantemente fazendo, desfazendo ou evocando memórias. Há, sim, saturação da capacidade de processar memórias, principalmente se o intervalo entre elas é curto ou são simultâneas; ao invés do que se diz, o saber ocupa espaço.


Por outro lado, os mecanismos de formação e evocação das memórias são altamente moduláveis por vias nervosas bem definidas, envolvidas no processamento de informações relacionadas ao estado de ânimo, aos sentimentos e às emoções.


Essas vias, que utilizam como neurotransmissores a noradrenalina, a dopamina, a serotonina e a acetilcolina, agem diretamente sobre receptores e sistemas enzimáticos dos neurônios do hipocampo ou do córtex, na hora de formar ou de evocar memórias, e podem melhorar sua função de maneira drástica, ou suprimi-la por completo.


A ansiedade e a depressão, que envolvem patologias dessas vias moduladoras, se acompanham de alterações da memória. Outro problema é que tudo indica que, em condições normais (na ausência de Alzheimer ou outras doenças cerebrais), os sistemas processadores de memória no cérebro atuam ao máximo de sua capacidade instalada.


Dado o nível de alerta, do estado de ânimo, da vontade de dormir, e da excitação ou depressão próprias de cada momento, o hipocampo, a amígdala e o córtex poderão formar, evocar ou extinguir memórias a um certo nível.


Um indivíduo triste e com sono não poderá, por mais que queira, aprender ou evocar mais do que consegue. Claro, melhorando seu nível de atenção ou dissipando sua sonolência, por exemplo, com um cafezinho, poderemos melhorar seu desempenho; mas isso não é agir sobre a memória senão sobre precondições tanto da memória como de qualquer outra função nervosa.


Mais um problema é que os genes e as moléculas envolvidos na formação e evocação de memórias não estão restritos às áreas nervosas responsáveis pelas memórias.


Encontram-se em todas as células do organismo, nervosas ou não. Estão nas glândulas salivares, no fígado, nos rins, etc. Só funcionam para a memória nos neurônios que a ela dedicam-se, e isso se deve à peculiar conexão de cada uma dessas células com outras, e à propriedade que estas têm de elaborar novas conexões ou de alterar as existentes, quando determinada seqüência de eventos bioquímicos ocorre nelas.


Por último, o maior problema de todos. Seguramente não queremos que toda nossa capacidade de formar e evocar memórias seja melhorada simultaneamente; nem sequer nos estágios mais avançados da doença de Alzheimer.


Ninguém quer melhorar sua lembrança de fatos horríveis ou aterrorizantes. O hipocampo, a amígdala e uma parte do córtex frontal possuem a sábia função de extinguir essas memórias indesejáveis, que são a terrível base do estresse pós-traumático ou das fobias. A extinção foi descoberta há um século por Pavlov, e recomendada por Freud para tratar justamente as memórias do medo: terrores, humilhações, etc.


A extinção constitui uma forma de aprendizado que, graças a Deus, deixa memória; recentemente demonstramos, em companhia de alguns colegas dos Estados Unidos, os principais mecanismos moleculares da extinção e suas variantes.


Em resumo: não está sendo possível, nem sequer desejável, melhorar a memória como um todo em pessoas sadias. É, sim, desejável, naqueles que padecem um problema de memória transitório (falta de sono, fuso horário, déficit de atenção) ou permanente (Alzheimer e outras doenças neurodegenerativas).

 

Mas é mais simples, mais barato e tem menos efeitos secundários tratar do déficit de atenção com psicoterapia e fármacos apropriados, e tratar dos problemas de sono ou fuso horário com um bom e merecido descanso.


E tratar das fobias ou do estresse pós-traumático com terapias de extinção. Não há como implantar chips que apaguem memórias seletivamente, nem administrar drogas que o façam, fora de Hollywood.


Já existem e, a cada dia que passa, haverá melhores fármacos para tratar o déficit cognitivo da doença de Alzheimer e outros quadros neurodegenerativos. Os avanços virão dos grandes laboratórios farmacêuticos, não de laboratórios de fundo de quintal ou de cientistas individuais. Ainda que os quintais ou os cientistas sejam da terra do Superman.


Só as grandes indústrias têm meios para investigar efeitos de compostos novos sobre os diversos sistemas do organismo em várias espécies, assim como determinar seus eventuais efeitos colaterais e toxicidade, e conduzir provas clínicas seguras.


O grande progresso nessa área, porém, virá provavelmente da terapia celular com células-tronco ou similares. Não há, por enquanto, nenhuma substância capaz de melhorar a memória das pessoas normais.

 

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Fonte: Jornal O Estado de S. Paulo, 26/12, reproduzido no JC e-mail 2675, de 27/12 2004.