Novos impasses éticos para médicos e enfermeiros
As mudanças promovidas pelo Programa Saúde da Família (PSF), do Ministério da
Saúde, na relação entre médicos e enfermeiros, destes com as famílias atendidas,
e a relação com o sistema de saúde coloca novos desafios éticos que tendem a ser
menosprezados nas discussões sobre bioética. Essa é uma das conclusões de Elma
Lourdes Pavone Zoboli e Paulo Antonio de Carvalho Fortes em um estudo sobre os
problemas éticos vividos por enfermeiros e médicos do PSF na cidade de São
Paulo. Publicado na última edição da revista científica Cadernos de Saúde
Pública, o
artigo focaliza as circunstâncias cotidianas vivenciadas por esses
profissionais de saúde e as peculiaridades das questões éticas enfrentadas por
eles. Devido ao caráter local do atendimento fornecido pelo PSF, as relações entre médicos, enfermeiros e famílias usuárias do programa tendem a se tornar mais pessoais e próximas. Essa proximidade traz questionamentos quanto à interferência da equipe na vida dos usuários do programa e de suas famílias: até que ponto os profissionais podem agir para conseguir a adesão às terapêuticas propostas e mudanças no estilo de vida? Ou, nas palavras de um dos médicos entrevistados: "apesar de toda a sensibilização, da educação que fazemos, ela [a pessoa usuária do programa] não enxerga aquilo [certos comportamentos e hábitos] como um fator que vai levar a ter doenças, (....) devo invadir essa casa? Temos esse direito? É ético esse procedimento?". Zoboli e Fortes acreditam que os usuários devem ter acesso às informações esclarecedoras pertinentes, recebendo orientações ou sendo persuadidos à mudança de estilos de vida não saudáveis. Neste caso, a persuasão é eticamente defensável, porém a coerção não. Os impasses éticos na relação dos profissionais de saúde com os usuários e outros membros da família trazem à tona a imprevisibilidade inerente às relações humanas na saúde, enfatizam os autores da pesquisa, o que tende a ser maior na saúde da família pelas peculiaridades que marcam esse relacionamento. "De um lado, os usuários e suas famílias buscam a resolução de um problema, de saúde ou não, que consideram importante, trazendo consigo seus segredos, medos, crenças e expectativas. De outro, a equipe, ainda inexperiente para lidar com situações decorrentes da contínua proximidade com os usuários e família, mantém-se presa a procedimentos, normas e rotinas do serviço ou ainda a seu entendimento técnico do que é melhor para os usuários e/ou famílias", dizem Zoboli e Fortes. No que diz respeito à relação entre os profissionais da equipe, somente os enfermeiros relataram, em seus depoimentos durante a pesquisa, situações de conflito e desacordo com os médicos. Esses, quando fizeram alusão às dificuldades para estabelecer os limites de cada profissional, questionaram o fato do Programa Saúde da Família não reconhecer a importância do médico ou a legalidade dos atos praticados pela enfermagem, mas sem trazerem qualquer ocorrência de confronto direto entre enfermeiros e médicos. O estudo indica que essa constatação corrobora estudos internacionais na área em que os médicos são freqüentemente apontados como fontes de conflitos éticos pelos enfermeiros, enquanto o inverso raramente ocorre. No Programa Saúde da Família, os conflitos entre os membros da equipe tendem a adquirir novos contornos, já que a identidade dos profissionais envolvidos no trabalho e a hierarquia entre eles ficam menos perceptíveis. O Programa promove uma mudança numérica na relação entre enfermeiros e médicos: nas unidades de saúde há, normalmente, um enfermeiro para, pelo menos, cada três médicos, enquanto no Programa Saúde da Família, esta proporção é equivalente. A reorganização da prática clínica promovida pelo Programa Saúde da Família exige, portanto, uma nova ética desfocada do "hospitalocentrismo" e da alta especialização que marcariam a conformação do sistema de saúde e a formação dos profissionais, lembram os pesquisadores. O PSF não se resume, assim, a uma reorganização da equipe ou da unidade básica de saúde: "os profissionais que atuam no PSF têm de exercer uma nova prática marcada pela humanização, pelo cuidado, pelo exercício da cidadania e alicerçada na compreensão de que as condições de vida definem o processo saúde-doença das famílias", concluem. Programa Saúde da Família A Constituição de 1988 instituiu o Sistema Único de Saúde (SUS) com o objetivo de descentralizar a execução dos serviços de saúde, deslocando-os para os estados e municípios. Nesse ínterim, foi criado, em 1994, pelo Ministério da Saúde, o Programa Saúde da Família com a proposta de deslocar o atendimento dos grandes hospitais universitários para as unidades básicas de saúde ou mesmo para os domicílios dos pacientes. Esse atendimento localizado - denominado como "atenção básica" - prioriza as ações de prevenção e a divulgação de informações sobre higiene e qualidade de vida. As equipes são compostas por médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem e agentes comunitários de saúde. A implantação desse Programa depende da administração municipal, que deve submeter a proposta ao Conselho Municipal de Saúde. O Ministério da Saúde, então, juntamente com as Secretarias Estaduais de Saúde, fornece o apoio necessário à elaboração do projeto e à sua implantação. Segundo dados do Ministério da Saúde, em 2004, o programa atingiu mais de 60 milhões de pessoas, acompanhadas por 19.200 equipes presentes na maior parte dos municípios brasileiros. _______________________ Fonte: http://www.comciencia.br, atualizado em 21/01/2005 |