O “velho” que habita em mim...
Profa. Ms.Vera Silvia Frangella
Este exercício refere-se a uma reflexão sobre um complexo e pertinente tema que, na verdade, corresponde à minha diretriz, respondendo aos meus por quês da busca de conhecimentos e aprendizado a respeito do processo de envelhecimento. Para desenvolver este relato, confesso, foram necessárias várias paradas em meu intenso e sempre corrido cotidiano. Contudo, proporcionou-me momentos (que não puderam ser medidos pelo tempo cronos, pois foram dominados totalmente pelo Kairós) de deliciosos resgates da memória, de introspecção, que refinaram meu autoconhecimento e favoreceram a minha re-significação e re-construção no âmbito pessoal e profissional.
Os primeiros velhos, de que me lembro com imensa saudade e com muito carinho, com os quais convivi e que muito me marcaram e habitam em mim, foram meus avós (tanto maternos quanto paternos), cada um a seu jeito, especialmente por suas histórias de vida e modos particulares de envelhecer. Digo isto porque, meus avós maternos sempre tiveram uma vida estável que se modificou completamente após o casamento de seus dois filhos, em um intervalo de tempo muito curto. Viveram, então, “a síndrome do ninho vazio” e, como se não bastasse, na tentativa de ajudar economicamente os filhos e resgatá-los para próximos de si, disponibilizaram e perderam seus imóveis, por conta de um mau negócio com uma grande empresa construtora. Este negócio, a princípio era bastante lucrativo, já que iriam trocar sua enorme casa, que ocupava uma grande extensão territorial, por quatro amplos e confortáveis apartamentos localizados nos belíssimos edifícios que passariam a substituir sua residência e ainda receberiam uma significativa soma em dinheiro, suficiente para a estabilidade econômica de toda a família e até dos futuros netos. Além do mais, esta proposta trazia consigo a possibilidade de re-união familiar, uma vez que todos morariam no mesmo terreno, mas em seus respectivos lares.
Tudo seria perfeito, se não fosse o golpe de mercado e a falência da famosa empresa. Daí, muitos gastos com advogados, a volta ao pagamento de aluguel, a perda do poder aquisitivo pela associação do momento da aposentadoria, a perda de seus papéis sociais, a chegada das doenças, a perda da própria moradia e um envelhecimento marcado pelas dores das perdas materiais e físicas. Processo de envelhecimento que acompanhei, mas não pude, não sabia como e não consegui resgatar e ressignificar; mas que sempre muito me incomodou e que me levou inúmeras vezes a sérios questionamentos sobre justiça, aposentadoria, políticas nacionais de saúde, cuidados para com o idoso principalmente doente; dentre tantas outras reflexões realizadas na tentativa de entender o processo e achar explicações e soluções cabíveis.
Em contrapartida, meus avós paternos: um casal que se separou. Meu avô, com outra esposa, residia no Estado do Paraná, na cidade de Indaial, para onde íamos (eu e minha família), muito esporadicamente, para visitá-los. Minha avó, uma velha de boas condições econômicas, muito vaidosa, saudável até seus 87 anos, cheia de vida, otimista, festeira, alegre e que morreu amando seu marido, a juventude e a vida, adorava viajar, era muito independente, mas que, no fundo, nos seus últimos anos de vida, sentia-se só. O seu jeito vaidoso, festeiro, vivaz, cheio de vontade de viver, com veneração pela vida, perseverante na obtenção de seus objetivos e na manutenção de um novo sonho, um alvo-objetivo a alcançar, certamente dela herdei! Na verdade, ela me deixou também um grande enigma, quando questionava a todos (inclusive seus médicos) do por que seu corpo envelhecera e já não mais acompanhava seu espírito que era o de uma jovem, que queria viver, tinha pressa, queria ser veloz, pois tinha muito que conhecer e fazer. A busca pela resposta a este enigma é que me levou, também, ao mestrado em Gerontologia na PUC/SP.
Meus avós, todos, são falecidos, mas que falta me fazem... Como gostaria de ter tido a oportunidade de poder ter convivido com eles mais tempo, na verdade, até hoje, para poder aproveitar melhor seus ensinamentos de vida e de lhes ensinar também, trocar carícias, afagos e idéias (sobre o envelhecimento, a vida)...
Ainda com relação ao convívio familiar, hoje tenho meu pai com 65 e minha mãe de 64 anos, felizmente ao meu lado e que, habitam com muita intensidade, em mim e, com os quais discuto muito todas as complexas questões da vida, do envelhecimento. Eles são meu esteio, sempre foram e, em especial, há dois anos, quando enfrentei sérios problemas de saúde que por várias vezes me confrontaram com a morte. Neste momento difícil pelo qual passei, senti o medo da finitude.
E, ainda dizem que o medo da morte é inerente ao velho, assim como que a doença e a morte são “coisas de velhos”. Ah, quanto equívoco... As doenças, a morte e os medos (especialmente da finitude) são próprios de todo e qualquer ser humano, independentemente de sua idade. Sempre pensei assim, mas posso dizer, hoje, que isto é uma verdade incontestável e muito difícil de aceitar e, principalmente, de se preparar e estar preparado para este certeiro momento final. Atualmente, este ou estes velhos que habitam em mim, estão re-elaborando e re-significando todos estes aspectos, para se preparar(em) para este momento que faz parte do processo natural da vida.
Mas, quantos outros velhos habitaram e habitam em mim... Todos os pacientes dos quais cuidei, diretamente nos meus primeiros oito anos de profissão, enquanto nutricionista do Instituto Central do HC-SP; tantos outros que atendi em meu consultório, que atendi em seus anonimatos nos acompanhamentos nutricionais individualizados, desenvolvidos pelos acadêmicos de nutrição sob minha orientação... Isso, sem falar no grupo de idosos do Moocanda, que foram os protagonistas de minha dissertação de mestrado em Gerontologia, os quais muito me ensinaram... Quantas histórias de vida, quantos variados processos de envelhecimento conheci e presenciei (saudáveis, doentes e terminais)...
Em todas estas experiências uma coisa ficou muito evidente: a complexidade do ser humano, do processo de envelhecimento (que não é único, mas variado; singular e ao mesmo tempo coletivo; cultural; e, também, não é sinônimo de doenças e só de perdas, mas também de ganhos). Além disso, deve-se destacar que o estudo na área da Geronto-Geriatria é inesgotável devido à alta complexidade do processo de envelhecimento e do próprio ser humano. Por outro lado, as investigações científicas precisam ser cada vez mais incentivadas e abrangentes, devendo usar a inter e a transdiciplinaridade. A aplicabilidade dos conhecimentos adquiridos na área da Geronto-Geriatria e a constante busca por novas informações são imprescindíveis, particularmente, para a minha vida particular e profissional. Assim, considero o envelhecimento um enigma inter/transdiciplinar desafiante e motivador.
Posso afirmar, portanto, que estes inúmeros velhos habitam em mim, mas estão em contínuo processo de elaboração, construção/desconstrução, re-significação, desde minha infância. Atualmente, eu detenho mais conhecimentos, mas ainda insuficientes sobre o processo de envelhecimento. Eu os adquiri não só no âmbito acadêmico, mas também com a convivência com cada um que cruzou, e ainda cruza, minha estrada da vida, incluindo a profissional. Posso afirmar que estou mais preparada para trabalhar e auxiliar outras pessoas, de meu convívio próximo e familiar, assim como meus pacientes e alunos, a entender e a lidar com o envelhecimento na busca de uma longevidade com dignidade e qualidade de vida.
Aí, me pergunto: mas quem sou eu e que velho habita em mim? Sou, incontestavelmente, um ser humano em busca do seu desenvolvimento, caminhos e respostas que garantam a qualidade de vida. Sou uma envelhescente e, ao mesmo tempo, um agente-transformador por formação e escolha. O velho que habita dentro de mim é um ser humano-cidadão, que vive o próprio processo de envelhecimento, mas que busca respostas e atitudes que propiciem mudanças para garantia de dignidade, respeito, longevidade com qualidade de vida, representatividade social, a todos os seres humanos. Sou, e sempre fui, um ser em construção, em busca do melhor!
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Este relato é uma produção resultado das aulas do curso de extensão “Educação e Envelhecimento II” – PUC/SP – COGEAE, dentro de uma abordagem de reflexão sobre o envelhecimento, sob a orientação da profa. dra. Vitória Kachar.
Mestre em Gerontologia pela PUC/SP. Docente da Graduação do Curso de Nutrição e Pós-graduação em Nutrição Clínica do Centro Universitário São Camilo. |