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Memórias estressadas 

Um pouco de agitação pode até fortalecer a memória. mas, depois de uma situação prolongada de stress, o cenário mental já não é tão satisfatório. 

Por Robert M. Sapolsky

O primeiro beijo. O casamento. O dia em que o carro saiu do controle na estrada e passou raspando pelo caminhão. Onde você estava quando houve uma inundação, quando Kennedy foi assassinado, durante o ataque de 11 de setembro de 2001. Cada detalhe desses eventos marcantes é gravado a fogo na sua mente, ainda que você não consiga se lembrar de absolutamente nada do que aconteceu nas últimas 24 horas. Ocasiões excitantes, emocionantes e grandiosas, inclusive as estressantes, são arquivadas facilmente. O stress pode melhorar a memória.

Todos nós também já passamos pela experiência oposta quando estamos estressados. Na primeira vez em que encontrei a família da minha futura esposa, estava com um nervosismo dos diabos; durante um jogo de palavras terrivelmente disputado depois do jantar, pus a perder a liderança da equipe composta por mim mesmo e por minha futura sogra com a total incapacidade, num momento crítico, de lembrar a palavra "caçarola". Alguns casos de falha da memória estão ligados a traumas infinitamente maiores: o veterano que passou por alguma catástrofe de batalha impronunciável, alguém que sofreu abuso sexual na infância - para quem os detalhes se perdem numa névoa amnésica. O stress pode atrapalhar a memória.

Para pesquisadores que estudam o fenômeno, como eu, essa dicotomia é bastante familiar. O stress melhora algumas funções em certas circunstâncias e as atrapalha em outras. Pesquisas recentes mostram como situações estressantes leves ou moderadas melhoram a cognição e a memória, enquanto as fortes ou prolongadas prejudicam essas capacidades.

Para entender como o stress afeta a memória, vamos a alguns dados básicos sobre como as memórias são formadas (consolidadas), como são recordadas e como podem desaparecer.

A memória não é monolítica: pode ter vários "sabores". Uma dicotomia particularmente importante é a entre memórias de curto e longo prazo. Com a primeira, você lê um número de telefone, corre pela sala antes de esquecê-lo e martela os dígitos. Depois o número se perde para sempre. Já a memória de longo prazo é a que você usa para se lembrar do que comeu no jantar de ontem, quantos netos tem ou onde fez a faculdade.

Outra distinção importante é entre memória explícita (também conhecida como declarativa) e implícita (que inclui um subtipo importante, a chamada memória processual), memória explícita se refere a fatos e eventos, ao lado de sua percepção consciente de sabê-los: sou um mamífero, hoje é segunda-feira, meu dentista tem sobrancelhas grossas.

Já as memórias implícitas processuais têm a ver com habilidades e hábitos, com fazer coisas mesmo sem ter de pensar conscientemente nelas: mudar as marchas do carro, andar de bicicleta, dançar foxtrote. Com prática suficiente, essas memórias podem ser transferidas entre as formas explícita e implícita de armazenamento.

Assim como existem diferentes tipos de memória, áreas distintas do cérebro estão envolvidas no armazenamento e na recuperação de informações. Um dos lugares críticos é o córtex, a enorme superfície cheia de circunvoluções do cérebro. Outro é a região espremida logo abaixo de parte do córtex, o hipocampo. Se quiser uma metáfora computacional totalmente simplista, pense no córtex como seu disco rígido, onde as memórias são guardadas, e no hipocampo como seu teclado, o meio que você usa para distribuir e acessar as memórias. Finalmente, estruturas do cérebro que regulam os movimentos do corpo, como o cerebelo, também estão envolvidas na memória implícita processual.

Agora, vamos aumentar a ampliação do nosso microscópio e examinar o que acontece no nível dos conjuntos de neurônios dentro do córtex e do hipocampo. O que sabemos é armazenado nos padrões de excitação de vastos conjuntos de neurônios - no jargão da moda, "redes" neuronais.

Tiramos partido dessas redes convergentes sempre que tentamos recordar uma memória que está na ponta da língua. Imagine que você esteja tentando lembrar o nome de um pintor, aquele cara, qual é o nome dele? "Era aquele cara baixinho com barba (ativando suas redes 'cara baixinho' e 'cara com barba'). Ele pintou aquele monte de dançarinas parisienses; não era o Degas (mais duas redes entram no jogo). Ah, lembra daquela vez em que eu estava no museu e tinha aquela gata que eu estava tentando paquerar na frente de um dos quadros dele... como era mesmo aquele trocadilho tonto sobre o nome do cara, aquele do nó no treco?". Com redes suficientes funcionando, você finalmente chega ao único fato que é a intersecção de todas elas: Toulouse-Lautrec.

Sinapses complexas

Hoje, os neurocientistas consideram que tanto a aquisição quanto o armazenamento das memórias envolve o "fortalecimento" de algumas redes em detrimento de outras. Para observar como isso ocorre, vamos aumentar ainda mais a ampliação, para visualizar os espaços minúsculos entre os ramos tortuosos dos neurônios, as chamadas sinapses. Quando um neurônio quer transmitir alguma fofoca sensacional, quando uma onda de excitação elétrica atravessa essa célula nervosa, desencadeia-se a liberação de mensageiros químicos - neurotransmissores -, que flutuam através da sinapse e excitam o neurônio seguinte. Existem dezenas, provavelmente centenas de tipos de neurotransmissor e as sinapses do hipocampo e do córtex fazem uso desproporcional do que provavelmente é o neurotransmissor mais excitatório, o glutamato.

As sinapses "glutamérgicas" têm duas propriedades essenciais para a memória. Primeiro, sua função é não-linear. Numa sinapse comum, um pouco de neurotransmissor do primeiro neurônio faz com que o segundo fique um pouco excitado; se um pouquinho mais de neurotransmissor ficar disponível, um pouquinho mais de excitação ocorre, e assim por diante.

Nas sinapses glutamérgicas, certa quantidade de glutamato é liberada, e nada acontece. Uma quantidade maior é liberada, e ainda assim nada acontece. Mas, quando determinado limiar é ultrapassado, abrem-se as comportas do segundo neurônio, e o que se segue é uma onda maciça de excitação. É essa onda que se torna essencial para o aprendizado.

A segunda característica é ainda mais importante. Nas condições adequadas, quando uma sinapse tem uma quantidade suficiente de experiências superexcitatórias causadas pelo glutamato, ela se torna mais excitável permanentemente. Essa sinapse acabou de aprender algo, ou seja, foi "potencializada" ou fortalecida. Daí em diante, basta um sinal mais sutil para recordar uma memória. Agora, podemos ver o que acontece quando o sistema reage ao stress.

O primeiro ponto, claro, é que o stress leve ou moderado melhora a memória. Trata-se do tipo de stress ótimo que nós chamaríamos de "estimulação" - ajuda a nos sentirmos alertas e focados. Larry Cahill e James McGaugh, da Universidade da Califórnia em Irvine, fizeram um teste particularmente elegante nessa seara. Pessoas que ouviam uma história com uma passagem particularmente emocionante se lembravam mais dos componentes emocionais da trama do que as que ouviam uma história uniformemente desinteressante. O estudo também indicou como esse efeito atua sobre a memória . O sistema nervoso simpático entra em ação, despejando epinefrina e norepinefrina na corrente sangüínea.

A estimulação simpática parece ser essencial, porque quando Cahill e McGaugh deram aos pacientes uma droga que detém a ativação do sistema (o bloqueador beta propanolol, medicamento usado para baixar a pressão), o grupo não se lembrou mais da história mais animada do que o grupo controle se lembrava da sua. Não é que o propanolol impeça a formação de memórias. Na verdade, a droga atrapalha a formação de memórias auxiliada pelo stress. Em outras palavras, as pessoas se lembravam das partes chatas da história tão bem quando os controles, mas não obtinham o aumento da memória proporcionado pela parte emocionante.

O sistema nervoso simpático leva o hipocampo indiretamente a um estado mais alerta e ativo, o qual, por sua vez, facilita a consolidação das memórias. Isso envolve uma área do cérebro que também é essencial para entender a ansiedade, a amígdala. O sistema nervoso simpático também faz com que as necessidades energéticas de potencialização dos neurônios sejam satisfeitas mobilizando glicose na corrente sangüínea e aumentado a força com que o sangue é bombeado para o cérebro. Um grupo importante de hormônios liberados em resposta ao stress é o dos glicocorticóides. Secretados pela glândula adrenal, eles muitas vezes agem como sua prima mais famosa, a epinefrina (também conhecida como adrenalina). Ela age em segundos; os glicocorticóides apóiam essa atividade ao longo de minutos ou horas.

De fato, uma elevação leve dos níveis de glicocorticóides facilita o processo pelo qual as sinapses do neocórtex e do hipocampo se tornam mais sensíveis aos sinais do glutamato, a potencialização de longo prazo que é a base do aprendizado.

Uma elevação desse nível também facilita a potencialização de longo prazo no hipocampo. Finalmente, há alguns mecanismos obscuros pelos quais o stress moderado, de curto prazo, torna os receptores sensoriais mais sensíveis. Papilas gustativas, receptores olfativos e células cocleares do ouvido exigem menos estimulação, sob stress moderado, para ficar excitados e transmitir informação para o cérebro.

Agora, podemos ver como a formação e a recuperação de memórias podem ficar desajustadas quando os fatores de stress são grandes ou prolongados. Vários estudos com ratos de laboratório - usando diferentes fontes de stress, como restrição, choque e exposição ao odor de um gato - mostraram declínio na memória explícita. Um déficit parecido surge quando doses elevadas de glicocorticóides são administradas a ratos. Outros aspectos da função cerebral, como a memória implícita, continuam bem.

Efeitos do stress

O quadro é bastante parecido em humanos. Problemas com a memória explícita aparecem em pacientes que sofrem de uma doença chamada de síndrome de Cushing, na qual tumores geram a secreção de toneladas de glicocorticóides. O tratamento prolongado com a versão sintética dessas moléculas, que muitas vezes é dada a pessoas que precisam controlar doenças inflamatórias ou auto-imunes, resulta também em problemas com a memória explícita. A evidência mais clara disso é que apenas alguns dias de doses altas de glicocorticóides sintéticos bastam para afetar a memória explícita em voluntários sadios.

Como o stress prolongado atrapalha a memória dependente do hipocampo? Uma hierarquia de efeitos foi demonstrada em animais de laboratório.

Primeiro, os neurônios do hipocampo expostos a níveis altos de glicocorticóides não funcionam mais tão bem. O stress pode afetar a potenciação de longo prazo nessa região cerebral, mesmo na ausência de glicocorticóides (como num rato em que as glândulas adrenais tinham sido removidas). A excitação excessiva do sistema nervoso simpático parece responsável por esse efeito.

Em meados dos anos 80, Ron de Kloet, da Universidade de Utrecht, Holanda, descobriu os mecanismos por trás dos problemas causadas pelos níveis elevados de glicocorticóides. O hipocampo têm grandes quantidades de dois tipos de receptores para essas substâncias. O interessante é que o hormônio se liga com dez vezes mais facilidade a um desses tipos (o chamado "receptor de grande afinidade") do que ao outro. Se os níveis de glicocorticóide subirem só um pouco, a maior parte do efeito hormonal sobre o hipocampo é mediada por esse receptor de grande afinidade.

Entretanto, o hormônio liberado durante um evento muito estressante ativa muitos receptores de baixa afinidade. E, logicamente, o que acontece é que a ativação do receptor de grande afinidade melhora a potencialização de longo prazo, enquanto o outro receptor faz o oposto.

Na segunda posição da hierarquia de efeitos, durante eventos muito estressantes a amígdala envia uma projeção neural grande e influente para o hipocampo. A ativação dessa cascata celular parece ser um pré-requisito para que o stress atrapalhe as funções do hipocampo. Basta destruir a amígdala de um rato ou cortar suas conexões com o hipocampo para que o stress não dificulte mais o tipo de memória que o hipocampo media, mesmo em níveis altos de glicocorticóide.

As redes neurais no hipocampo também começam a se desconectar. Bruce S. McEwen, da Universidade Rockefeller, mostrou que, em ratos, depois de poucas semanas de stress ou exposição a glicocorticóides excessivos, os cabos de comunicação celulares conhecidos como dendritos começam a afinar, atrofiar e se retrair . Por sorte, parece que, no fim desse período, os neurônios conseguem recuperar essas conexões. As memórias não são perdidas, só se tornam mais difíceis de acessar.

O stress prolongado inibe o nascimento de novos neurônios no hipocampo, um dos dois únicos locais onde, segundo descobertas recentes, essas células ainda nascem no organismo adulto. Quando o stress cessa, a neurogênese se recupera e, se sim, com que rapidez? Ninguém sabe. E qual a importância de o stress impedir a neurogênese adulta? A questão implícita nessa pergunta é a utilidade da neurogênese adulta. Ainda não há um veredicto sobre isso também.

Se os neurônios do hipocampo sofrem um trauma (como um derrame ou ataque), o stress pode torná-los mais suscetíveis à morte. Depois de cerca de 30 minutos de stress contínuo, a chegada de glicose ao local não é mais aumentada e volta aos níveis normais. Se o fator estressante se mantiver, a chegada de glicose ao cérebro é inibida. Meu laboratório e outros mostraram que os problemas de energia relativamente leves causados por essa inibição fazem com que se torne mais difícil para um neurônio deter as milhares de coisas que dão errado durante os traumas neurológicos.

Finalmente, alguns estudos parecem sugerir que os glicocorticóides e o stress podem até matar neurônios diretamente, embora os resultados sejam preliminares e controversos.

Esses achados têm implicações perturbadoras. Cerca de 16 milhões de receitas médicas de glicocorticóides são prescritas por ano nos EUA. Boa parte do uso é benigno - um pouco de pomada de hidrocortisona para alergia, uma injeção da mesma substância para um joelho inchado, inalação de esteróides para asma. Mas centenas de milhares de pessoas tomam doses altas de glicocorticóides para suprimir o sistema imunológico em doenças auto-imunes (como Aids, lúpus, esclerose múltipla ou artrite reumatóide). Então, será que deveríamos evitar o uso de glicocorticóides contra essas doenças para contornar a possibilidade de envelhecimento acelerado do hipocampo mais tarde? É quase certo que não: essas doenças muitas vezes são devastadoras, e os glicocorticóides conseguem tratá-las com eficiência. E provavelmente os problemas de memória sejam um efeito colateral sombrio e inevitável.

Desperdício de energia

Os neurologistas também usam versões sintéticas dos glicocorticóides (hidrocortisona, dexametasona ou prednisona) para reduzir o inchaço do cérebro depois de um derrame. Essas substâncias fazem maravilhas ao bloquear o edema que surge depois de um tumor cerebral, mas parece que elas não ajudam muito os edemas pós-derrame. Pior ainda, há evidências crescentes de que esses famosos antiinflamatórios podem, na verdade, ser pró-inflamatórios em certas lesões cerebrais. Uma implicação ainda mais perturbadora desses achados é que o que consideramos níveis comuns de dano cerebral depois de um derrame ou uma convulsão são, na verdade, piorados pela liberação natural de glicocorticóides, como parte das respostas do corpo ao stress nessas situações.

Veja como tudo isso é bizarro e pouco adaptativo. Um leão persegue você, e seu corpo secreta glicocorticóides, cujo efeito primário sobre o metabolismo geral é transferir energia para seus músculos da coxa e melhorar a corrida: bela tática. Marque um encontro com uma desconhecida, fique nervoso, e você secretará glicocorticóides que transferem energia, provavelmente irrelevante, para seus músculos da coxa. Tenha um derrame sério, faça a mesma coisa - e seu dano cerebral se agravará ainda mais.

Como essas respostas pouco adaptativas surgiram? A explicação mais provável é que o corpo simplesmente não evoluiu a tendência para não secretar glicocorticóides durante uma crise neurológica. O processo funciona mais ou menos do mesmo jeito em todos os mamíferos, pássaros e peixes, e foi só no último meio século que as versões ocidentalizadas de uma única dessas espécies tiveram alguma chance de sobreviver a eventos como um derrame. Simplesmente não houve muita pressão evolutiva para que a resposta do corpo a lesões neurológicas maciças se tornasse mais lógica.

Não faz mais que 50 ou 60 anos que consideramos que úlceras, pressão sangüínea ou a vida sexual são sensíveis ao stress. Também reconhecemos hoje as maneiras pelas quais o stress interfere em nosso aprendizado e memória. O famoso "neurocientista" Woody Allen disse uma vez: "Meu cérebro é meu segundo órgão favorito". Acho que a maioria de nós colocaria o cérebro numa posição ainda melhor.

O autor

Robert M. Sapolsky é professor de ciências biológicas e neurologia da Universidade Stanford e pesquisador-associado do Museu Nacional do Quênia, onde estuda uma população de babuínos selvagens há mais de 25 anos. Concluiu seu dotourado em neuroendocrinologia na Universidade Rockfeller em 1984. Os campos de pesquisa de Sapolsky incluem morte neuronal, geneterapia e fisiologia de primatas.

- Tradução Reinaldo José Lopes

Para Conhecer Mais

Este artigo é uma adaptação de Stress and memory, capítulo 10 do livro Why zebras don't get ulcers, terceira edição, de Robert M. Sapolsky. Reimpresso por um acordo com Owl Books, um selo de Henry Holt and Company. © 1994, 1998 por W. H. Freeman e © 2004 por Robert M. Sapolsky. Todos os direitos reservados.

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Fonte: Revista Viver Mente&Cérebro - Edição Nº 146 - março de 2005 – Disonível em:
http://www2.uol.com.br/vivermente/conteudo/materia/materia_20.html