Karol Josef Wojtyla (1920-2005)
Alberto Dines A agonia do Papa João Paulo II iniciada no dia seguinte ao anúncio da interrupção das funções vitais de Terri Schiavo nos remete a um feixe de reflexões sobre as caprichosas armações do destino. Crentes ou agnósticos, devotos ou céticos, reflexivos e pragmáticos não podemos escapar de uma incontrolável transcendência. Ao lembrar a extraordinária figura de Karol Wojtyla, impossível separá-la dos feitos e palavras do mais político de todos os pontífices. Se no espectro ideológico simplificado o seu pontificado não seria classificado como "progressista", por outro lado seria errado, injusto e imperdoável enquadrá-lo simplesmente como "conservador". Aquele que foi um dos baluartes da luta contra a tirania soviética foi também um dos baluartes do ecumenismo. Se a imagem do Papa Pio XII deixou o Vaticano com a marca de submissão ao nazifascismo, a trajetória e opções de João Paulo II como homem e sacerdote colocaram a Santa Sé junto daqueles que se recusam a esquecer o pesadelo do Holocausto. Enquanto nos EUA mantém-se armado o circo eleitoral para impedir que o ser humano continue suas indagações e questionamentos sobre o fim e o início das coisas, em Roma escancaram-se as portas da dor e também da razão. A morte faz parte do processo de viver, impossível ignorá-la. Os irmãos Bush, e a legião de dogmáticos que os acompanharam em toda parte do mundo, serviram-se de uma jovem morta-viva em estado vegetativo há 15 anos para tentar impor o fim da filosofia. Talvez inspirados por Francis Fukuyama que em meados dos anos 1990 profetizou o fim da história, aqueles que se pretendiam defensores da vida, na realidade, estavam proclamando a morte do pensamento. Não perceberam que as mordaças que tapavam suas bocas com a palavra "life" era uma irônica e flagrante confissão de que não queriam discutir nem exercer o supremo dom da condição humana. Bush e seus sequazes querem zumbis incapazes de cogitar e fazer escolhas. Esse tipo de fanatismo detesta dúvidas, dilemas, angústias e buscas. Como escreveu o filósofo Norbert Elias, a morte é um problema dos vivos. Mortos não têm problemas. E as únicas criaturas que se preocupam com a morte são os seres humanos. Proibi-los de questionar os limites da morte equivale a impedi-los de exercer a vida com plenitude. Não por coincidência, Tales de Mileto, considerado o pai da filosofia ocidental, além de prever pela primeira vez um eclipse solar no dia 28 de maio de 585 A.C., preocupou-se intensamente com o surgimento e a desaparição das coisas, inclusive da vida. Depois dele, ao longo dos últimos 2.500 anos, a humanidade humaniza-se sistematicamente através de um maravilhoso esforço para entender tudo o que a rodeia – da água, matéria primordial, a Deus, a essência do espírito. A forçada transferência da tragédia das famílias Schiavo e Schindler para a esfera do espetáculo político mundial, além da violência intrínseca às guerras da propaganda, também representa a entronização da banalidade. O exercício da razão é proibido nos palanques – neles só cabem fúrias. Principalmente em nações onde a pena de morte é encarada com naturalidade e reivindicada como solução para erradicar a violência. O esquema americano de poder conseguiu degradar tudo o que defende – democracia é muito mais do que manifestações populares nas ruas; a luta contra o terrorismo não pode conviver com a supressão de direitos; respeito à vida não pode ser aviltado pelo desrespeito à verdade. *** Este texto está sendo escrito diante de um quadro irreversível: o Papa ainda vive mas quando for lido já poderá ter falecido. Neste território fronteiriço e impreciso, confluência entre a vida e a morte, impõe-se o silêncio. Como num oratório de Bach, impossível recusar a imponderável e irreprimível sensação de hora sagrada. ______________________________________
Fonte: Observatório da Imprensa,
05/04/2005 |