São Paulo 450 anos
por Vera Brandão –
Pesquisadora
Mentora O trabalho com idosos envolvendo a escuta compartilhada possibilita uma melhoria na saúde por meio da valorização, ressignificação e registro das memórias das trajetórias individuais, dos bairros e da própria cidade, local de origem e destino desses cidadãos. No momento em que se discute a inclusão social de tantas camadas desprovidas de recursos, não podemos deixar de ressaltar a mesma condição precária da população idosa, vista como improdutiva e onerosa, e assim também discriminada e posta à margem da vida social. Temos exemplos de que sua participação na vida social das comunidades onde residem favorece um envelhecimento ativo, prevenindo a instalação de doenças e possibilitando uma vida mais independente e integrada. Por acreditar nisso, partimos para a capacitação de profissionais, aliando uma base teórica à vivência de resgate das trajetórias individuais e profissionais, sensibilizando-os para o exercício de uma escuta atenta às narrativas dos idosos. Além do aspecto comemorativo dos 450 anos de São Paulo, tínhamos como objetivo resgatar o papel cidadão e participativo desses indivíduos, valorizando-os como produtores culturais e “donos” de sua própria história, como um exercício de inclusão e reafirmação de identidade. Os resultados obtidos demonstram que estes e outros objetivos como, a integração intergeracional na família e na comunidade, foram atingidos. Em muitos casos, houve uma participação muito ativa de filhos e netos, seja digitando os relatos, ajudando com os materiais ou organizando os aspectos gráficos dos cadernos. O projeto O Projeto São Paulo 450 anos: Memória Viva - Cidadania Ativa é o resultado de uma parceria estabelecida entre a Secretaria Municipal da Saúde/COGest – área temática de saúde do idoso -, e o Núcleo de Estudo e Pesquisa do Envelhecimento (NEPE) do Programa de Estudos Pós-Graduados em Gerontologia da PUC-SP. Teve o patrocínio da Novartis Biociências S.A. e foi realizado no período de Outubro de 2003 a Julho de 2004.[1] A realização desse projeto teve dois momentos: a capacitação de 15 profissionais da área da saúde, com o curso Oficinas Memória e Cultura – Memória Autobiográfica: Teoria e Prática, e a supervisão da implementação e execução das oficinas por eles coordenadas, com os idosos, nas unidades de saúde.[2] O projeto teve como objetivo geral evocar a história de seis bairros de São Paulo por meio da narrativa de seus moradores idosos no momento em que a cidade comemorava seus 450 anos. O resultado é o caderno de memórias escrito pelos idosos, tendo como facilitadores os profissionais que coordenaram o projeto nas unidades de saúde. Os bairros escolhidos foram: Aricanduva/Carrão; Lapa; Mooca; Pinheiros; Santo Amaro e Sé. O critério utilizado considerou o número de idosos residentes e a antigüidade do bairro. Participaram dos trabalhos 62 idosos com idades que variaram de 59 a 89 anos, 11 do sexo masculino e 51 do feminino, de diferentes profissões e locais de procedência, sendo que a maioria tem como origem famílias de imigrantes - portugueses, italianos, espanhóis e japoneses – e migrantes, exemplos do mosaico cultural, característica marcante da cidade de São Paulo. Através dos seus relatos, vemos os fios da memória na trama da cultura. Fios que teceram o sentido dessas vidas e marcam a história de cada um e da nossa cidade. Caderno de memórias Este relato procura trazer a um público mais amplo o resultado do trabalho efetuado nas unidades de saúde dos bairros citados pelas profissionais que realizaram o curso de capacitação. Com competência e empenho, foram as facilitadoras do processo de rememoração e organização do material produzido pelos idosos, tanto o que foi escrito por eles, como também fotos, cartas, objetos significativos e, especialmente, criando um espaço de ressignificação e trocas de emoções, muitas não materializadas e nem mesmo verbalizadas, mas que também fazem parte desta experiência vivida e do acervo legado. O produto final do processo – o caderno de memórias, trabalho conjunto das profissionais facilitadoras e dos idosos – mostra como cada grupo viveu e elaborou essa experiência única e original. Não foi colocada uma regra geral nem um modelo pré-determinado para realização dessas oficinas e na leitura dos relatos. Fica claro como cada grupo realizou o seu trabalho. O que existiu sempre em comum, desde o primeiro encontro, foi um acordo ético entre os profissionais e os participantes, incluindo um consenso sobre o que seria desvelado ao público. É um acordo sempre necessário nesse tipo de trabalho já que as narrativas compartilhadas pelo grupo trazem muitas vezes lembranças mais íntimas. Como essas são, posteriormente, organizadas em um caderno de memórias e passam a fazer parte da história pública e viva da cidade, é fundamental o acordo sobre o que tornar público. As palavras dos profissionais e idosos envolvidos neste projeto indicam o interesse que o trabalho despertou nos participantes. Assim o trabalho de capacitação, realizado no período de outubro a dezembro de 2003, foi avaliado ao seu final:[3] O curso... possibilitou um aprendizado não apenas técnico, mas principalmente do ponto de vista afetivo... Esses conhecimentos ampliam a atuação do profissional, vindo acrescentar qualidade ao trabalho desenvolvido na unidade. Achei o curso muito organizado, os textos foram seqüencialmente adequados e dois despertaram a atenção: O que é memória, de Ivan Izquierdo, e Não somos Cronos, somos Kairós, de Joel Martins. Ambos me levaram à reflexão tanto no âmbito pessoal quanto no profissional. (assistente-social) O objetivo foi atingido, pois mobilizou a minha postura reflexiva e desencadeou movimentos internos significativos de releituras de momentos vividos afetiva e profissionalmente. Afetivamente pelos tempos “internos” e mínimos, e profissionalmente como complemento ao meu trabalho de reabilitação neuropsicológica e cognitiva com pacientes demenciados. Esta proposta deve ser multiplicada para as Unidades Básicas de Saúde, pois corresponde aos objetivos de prevenção e promoção. (fonoaudióloga) Textos: muito interessantes e diferentes, pois não é uma leitura habitual na minha formação. Vivências: inesquecível! Para desenvolver esse trabalho com idosos, precisamos vivenciá-lo para conhecer os sentimentos que afloram e [assim]... estaremos mais sensibilizados para perceber as possíveis demandas do grupo. Profissionalmente, creio que haverá possibilidades de desenvolver o mesmo trabalho com diferentes grupos e enfoques temáticos. (enfermeira) Achei que os textos abordam o envelhecimento num contexto realista, reflexivo, crítico e transformador. Ficou claro como a memória afetiva está presente... Alguns momentos foram únicos e tomados por emoções. A dinâmica utilizada será um auxílio precioso para repensarmos as abordagens e recursos na prática profissional. (terapeuta ocupacional) Os profissionais, em seu relatório final de julho de 2004, avaliaram positivamente os resultados obtidos com os idosos. Algumas palavras das duplas facilitadoras: No final dos encontros pudemos perceber, na fala dos componentes da oficina, que (...) [ela] trouxe muitos ganhos e alegrias. Só fez bem e aproximou mais os filhos e filhas, além de outros parentes, na recordação dos fatos vividos. A sensação que tínhamos, naqueles momentos narrados [era] que estávamos fazendo parte da mesma história, como num curta-metragem (...) Apesar de algumas dificuldades sentimos que cumprimos a missão e atingimos o objetivo proposto pelo projeto e (...) [pudemos] proporcionar a prevenção nesse trabalho de qualidade de vida para o cidadão idoso (...) Parece que chegamos ao final! A sensação é de prazer, gratificante, porque estamos deixando nas mãos de cada um o seu produto final, que vem “cheio” de sentimentos. (bibliotecária e terapeuta ocupacional) A participação ativa dos idosos na elaboração do “Álbum de Memórias” foi o produto concreto para resgatar a auto-estima e o processo de inclusão social dos mesmos. Houve preocupação e cuidado constantes desde o início da Oficina em favorecer, sempre que possível, um espaço em que os idosos pudessem desenvolver a autonomia e exercitar seus pontos de vista e opções, aliados ao papel de narradores de suas memórias. Os desdobramentos desse processo foram riquíssimos: movimento de reinserção social, com valorização do seu papel perante a família e a comunidade; crescimento individual e grupal (dos participantes e coordenadoras); estabelecimento de vínculos afetivos e articulação dos participantes (anotar endereços, telefonar, trocar informações); estímulo a uma atitude mais ativa de busca e organização de dados (...) e manutenção do papel de “narrador da própria história”, ampliando seu universo e redes sociais (contatos com a imprensa local, elaboração de seu próprio álbum de memórias com o envolvimento dos familiares, projeto de escrever um livro etc). Conduzir esta Oficina promoveu um enriquecimento interno, profissional e pessoal muito grande. Acreditamos que esse crescimento foi gerado tanto pelo produto positivo obtido (concretização da proposta) quanto pela própria característica dessa Oficina, que envolve reminiscências e, logo, AFETA O OUTRO. (assistente social e fonoaudióloga) Finalmente, trazemos a avaliação dos idosos que participaram das Oficinas de Memória, no período de março a julho de 2004, que assim se expressaram: Gostei imensamente de participar desse trabalho. Achei que foi ótimo, pois estava saindo de uma fase ruim e o trabalho me estimulou a pensar um pouco nos momentos bons que a vida me proporcionou. Seria muito bom se esse trabalho pudesse ter continuidade. Recordar (...) às vezes precisa Coragem... Críticas não tenho, sugestões, sim. Acho que em todos os meses deveriam ser organizadas reuniões como essa, para os idosos falarem sobre o hoje, o agora (...) O ontem, o passado, foi bom recordar. Mas e hoje? Durante 50 anos eu vivo na Vila Carrão, essa é a primeira oportunidade de falar, de conhecer as senhoras... é uma alegria e grande satisfação... Eu desejo aprender melhor a língua portuguesa para conviver melhor com as pessoas... Agora eu posso encontrar as senhoras na feira e dar um abraço. Gostei muito, mas ainda acho que preciso me valorizar mais. Eu achava que não tinha muita coisa para falar no contexto. Mas foi muito bom. Tive oportunidade para lembrar muitas coisas da Lapa e da minha vida. Eu sempre quis fazer isso. Eu falei tudo, contei toda minha história e puxei o passado e o presente. Para ser sincera, no começo achava que ia ser besteira. Mas depois que comecei, eu adorei, aprendi muita coisa. (...) Todo mundo falando a gente sempre aprende. Nunca é tarde. (...) Para mim fez muito bem. Poxa, vida! (...) Saiu tanta coisa que pra mim já estava fortemente enterrada lá no fundo. (...) Apareceu tanta coisa da minha vida que eu até já não lembrava (...). Estou muito contente por isso. Como é gostoso poder compartilhar. A gente sente-se bem. Foram tantas as coisas que passamos que poderíamos escrever um livro. A velhice é um tempo de vida. Eu passei tardes alegres, lembrando meus pais, avôs, o tempo da infância, as fotografias antigas, a paquera, a lembrança da música que marcou, o cheiro da Mooca, e por fim as receitas das avós. Às vezes chegava cansada e aborrecida, mas no decorrer da reunião eu ficava alegre com as conversas das amigas. Ao lembrarmos os bons momentos, é inevitável que recordemos alguns momentos desagradáveis, mas logo trocamos algumas idéias e dentro de alguns minutos estávamos todos rindo daqueles momentos do passado e nada nos abalou. Percebi também minha evolução, quando passei por uma consulta de rotina e o médico recomendou que fizesse palavras cruzadas. Eu respondi: “Tudo bem doutor, mas só que eu posso fazer mais do que isso.” Acredito que o doutor não entendeu nada! É pena não termos mais oportunidades para fazer essas experiências tão valiosas e descobrir que ainda somos tudo! Não imaginava do que se tratava, estava curiosa e ao mesmo tempo preocupada. Memória: será que tenho? Se não me lembro o que comi ontem! Mas quando a primeira senhora começou a falar, vi que o passado estava presente na cabeça de todas as participantes. Cada uma contou sua história: brasileiras, portuguesas, espanholas, casadas, viúvas e solteiras. Algumas tinham filhos, outras não. Umas tiveram casamentos felizes, outras eram separadas. Fiquei feliz ao perceber que todas tiveram lutas e também perdas, grandes (...) apesar de tudo, os bons momentos, as alegrias da vida foram sem dúvida alguma muito maiores. De onde vêm as histórias? Foi com preocupação que fiquei inicialmente me perguntando: o que os outros esperam de mim? E também me questionando, se teria algo para contar que fosse de interesse para as outras pessoas. Tudo o que acontece no dia-a-dia daria para contar? Seria história? As minhas lembranças do passado, aquilo que conheci, poderiam servir para alguma coisa? Sim! Descobri que minhas recordações fazem parte de uma história não oficial, mas viva, pois eu estava lá enquanto a história acontecia. Estes trechos extraídos dos Cadernos de Memória, elaborados pelos idosos participantes dos seis grupos, formados para contar suas histórias e do bairro onde vivem, exemplificam o poder regenerador, agregador e nivelador da memória. De origens, profissões, nível escolar, sexo e idade diversos, os indivíduos reuniram-se para contar suas experiências de vida formando uma comunidade afetiva, como já tinha ocorrido com o grupo de profissionais no processo de capacitação. Irmanaram-se ao compartilhar suas histórias e os momentos de emoção por elas trazidas. Esperamos, brevemente, compartilhar estas histórias com os nossos leitores.
O que a memória ama fica eterno [1] Coordenação Geral: Profª Dra Suzana Medeiros – PUC-SP. Coordenação Técnica: Ms. Marília Berzins – SMS/COGest- área temática saúde do idoso. Capacitação e Supervisão: Profª Dra Vera Brandão – NEPE/PUC-SP. [2] Participaram 04 fonoaudiólogas; 03 psicólogas; 02 bibliotecárias; 01 terapeuta educacional; 03 assistentes sociais e 02 enfermeiras. [3] Não nos é possível, neste espaço, colocar todas as avaliações, seja dos profissionais seja dos idosos. Selecionamos algumas mais significativas, como exemplo. O relatório final foi entregue ao Programa de Pós-Graduação em Gerontologia, fazendo parte de seu acervo. |