Sobre lembranças e outros esquecimentospor Delia
Catullo Goldfarb -
Pesquisadora Mentora Levantar alguns questionamentos sobre as demências tradicionalmente consideradas como puros quadros neurológicos é o que se pretende neste pequeno espaço, fazendo um percurso pela obra freudiana que articula os conceitos de tempo, temporalidade, finitude e memória para, posteriormente, analisar o conceito de sujeito e subjetivação. Finalmente, propõe-se algumas hipóteses para a causalidade psíquica das demências Uma cena Uma senhora esquece de dar um recado, de pagar uma conta, se angustia de maneira exagerada por qualquer perda considerada banal... São “coisas de velho” disse a família conformada. Mas o perigo cresce... Um dia esquece o fogão ligado, num outro não encontra o caminho de volta para casa, aumentando a irritabilidade, e instala-se o isolamento.
Um diálogo - Alô, mãe? Feliz dia das mães!!!! - Quem fala? - Mãe, sou eu, seu filho, a senhora não reconheceu minha voz? - Filho? Que filho? Eu não tenho filho. - A senhora está brava comigo porque faz tempo que não ligo? - Mas quem está falando? - Seu filho Pedro, de Paris. - Quem?? - ... Chama o pai. - O Pai? Mas você não sabe que meu pai já é falecido? - Não, seu pai não, meu pai. - Mas meu pai morreu há muito tempo... - Por favor, a senhora chame o João, seu marido... - Ah! O João!! ... João, aqui há um rapaz que quer falar com você!!!
Outra cena No asilo ou “casa de repouso” observamos olhares perdidos, silêncio, olhos inquisitivos que nos demandam por respostas que ignoramos, perguntas que se repetem querendo saber sempre a identidade de alguém, chamados ao passado. Muitos diagnósticos de demência (demasiados talvez?), a maioria tipo Alzheimer, irreversíveis.
De que nos falam essas cenas? Por que um sujeito esquece a própria história? Por que esquece de fatos tão significativos para sua existência como o da maternidade? Como entender isso como psicanalista?
Quando se pensa na doença demencial, no que se refere especialmente à perda de memória, a primeira coisa que se faz é atribuí-la a uma deterioração neuronal. Claro que não negaremos radicalmente essa constatação, mas podemos nos dar a liberdade de pensar outros pontos de vista, outras abordagens. Já no Projeto, Freud nos alerta para o fato de que qualquer teoria séria sobre os processos psicológicos deve dar uma explicação sobre a memória, e esse tema continuou presente ao longo de toda sua obra, em que a articulação dos conceitos de tempo e memória são uma constante. Vejamos, por exemplo, o Manuscrito K, de 1896, em que retoma - em relação ao caso Emma - a questão do efeito de posterioridade que acabara de trabalhar no Projeto e reafirma a idéia de que quando existir uma excitação sexual intensa nos primeiros anos de vida, esta só será ressignificada como traumática na puberdade, pois a criança pequena não teria possibilidade de registrá-la como tal. Na carta 52 do mesmo ano, fala em retranscrições periódicas do material mnêmico registrado sob variedade de signos. Essas retranscrições acontecem em diferentes momentos da vida, e entre essas épocas deve existir uma tradução do material psíquico que o adapte às novas necessidades. Quando essa tradução não é possível, acontecem as psiconeuroses. E Freud continua pensando... No Manuscrito L – adendo da carta 61 - assinala que as fantasias são verdadeiras barreiras psíquicas para bloquear as lembranças, refiná-las e sublimá-las; as explica também como uma conjunção do ouvido e valorizado a posteriori, ao que se acrescenta o passado especialmente como história familiar e o visto pelo próprio sujeito. No Manuscrito M, também de maio de 1897, avança ainda mais ao afirmar que as fantasias se originam por desfiguração e fragmentação, como um corpo químico que se combina com outro. O primeiro efeito da desfiguração é a falsificação da lembrança por fragmentação, processo no qual são primordialmente descuidadas as relações temporais. Nos fragmentos do visto, mais o ouvido, mais as recordações associadas, a dimensão temporal confunde-se e o produto liberado associa-se a outra cena, de maneira tal que o produto original fica perdido. Isso pode ser pensado como uma “metabolização” que resulta em uma “temporalidade subjetiva” conduzida pela linha temporal do desejo, produto de um processo de reorganização e não como reprodução linear de uma cronologia externa ao sujeito. Quando retorna de sua viagem à costa do Mar Adriático, em 1898, escreve duas cartas a Fliess (cartas 96 e 97) informando-o de ter escrito um breve artigo sobre um episódio de esquecimento de um nome próprio que tinha lhe acontecido durante a viagem. “Sobre o mecanismo psíquico da desmemória” é considerado o primeiro passo para a “Psicopatologia da vida cotidiana”, em que também vai se referir ao mesmo episódio do esquecimento do nome do pintor Signorelli. Nesse trabalho, Freud, muito claramente adjudica os fenômenos de esquecimentos, especialmente de nomes próprios, ao mecanismo da repressão. Em As Lembranças Encobridoras, assinala que nas lembranças infantis são freqüentemente descartados certos conteúdos enquanto outros se conservam detalhadamente apesar de não terem importância. Esse fenômeno outorga à recordação uma falta de sentido, mas conserva uma força como impressão. Os elementos realmente significativos são sufocados e permanecem disponíveis na memória, e outros se enlaçam com aqueles. Lembranças que aparecem justamente para que outras, mais conflitivas, possam ser esquecidas. Uma intensidade psíquica é deslocada de uma representação para outra, permanecendo a primeira abandonada e assumindo a segunda a função daquela. Podemos comprovar que o mecanismo da memória teria como função a preservação do sujeito, já que a tendência é evitar recordações dolorosas. Mas as lembranças não são aleatórias. Haveria uma espécie de compromisso em que as imagens mnêmicas guardam alguma relação (especialmente de tempo e espaço) com a vivência reprimida, possibilitando o labor de reconstrução. Freud chama a atenção para uma questão crucial na articulação do tempo e da memória. Se as recordações infantis são reprimidas, isso só pode acontecer depois da instalação deste mecanismo. Assim, confirmamos a já clássica sentença que diz que a memória só é possível porque existe o esquecimento. Nesse sentido, não se possui recordações “da” infância, e sim “sobre” a infância. Ou seja, a infância não é lembrada tal como foi “na realidade” e sim como foi construída em tempos posteriores. As lembranças não surgem, são criadas a partir de um sujeito que já não é mais o mesmo. Em Recordar, Repetir e Elaborar, de 1914, Freud oferece aos seus leitores “novos conselhos sobre a técnica psicanalítica”, frase esta que formava parte do título original deste trabalho. Esses conselhos baseiam-se especialmente no esclarecimento dos fenômenos de resistência e repetição observados na clínica. Dos casos citados por Freud, um nos interessa especialmente, pois fala em repetição, faz a descrição do que rapidamente seria nos dias de hoje diagnosticado como um caso de demência senil em fase inicial: Posso mencionar como exemplo extremo o caso de uma velha senhora que repetidas vezes em um estado crepuscular tinha abandonado sua residência e seu esposo e fugido para algum lugar, sem jamais chegar a saber conscientemente o motivo dessa evasão. Começou o tratamento comigo numa transferência terna e bem definida que cresceu nos primeiros dias, mas ao cabo de uma semana evadiu-se também de mim, sem que eu tivesse tido o tempo suficiente de lhe dizer qualquer coisa que evitasse essa repetição. A questão do tempo e da memória, articulada com resistência e repetição, é presença constante nesse texto; o objetivo da técnica psicanalítica seria, em termos descritivos, preencher as lacunas da memória, e em termos dinâmicos vencer as resistências da repressão. Vencer o bloqueio. Mas um dos pontos mais instigantes deste trabalho refere-se ao questionamento da verdade histórica das recordações. Freud assinala que, freqüentemente, o paciente pode “recordar” algo que na verdade nunca foi esquecido pelo fato de jamais ter sido consciente, construindo-se assim uma certeza que não corresponde às recordações de vivências e sim a nexos, fantasias e emoções de sentimentos que, definitivamente, não importam muito se alguma vez foram conscientes e depois se esqueceram, ou se jamais chegaram à consciência. Ou seja, freqüentemente o esquecido pode-se limitar à dissolução de nexos, desconhecimento de conseqüências, isolamento de recordações. Para que esses conteúdos reprimidos, repetidos, resistidos passem a formar parte da história do sujeito é necessário um trabalho de elaboração, isto é, de simbolização. Esse é justamente o trabalho da análise tal como Freud a entendia: transformar a repetição em lembranças. Quando ao longo de seu trabalho clínico Freud percebe que conteúdos sexuais infantis são rechaçados e submetidos ao esquecimento, atribui esse fenômeno não a um mecanismo próprio da memória como função neurológica, e sim a certas situações originadas na vida cultural como asco, pudor e normas e valores sociais. Vale lembrar que a pulsão que não cessa de pulsar é submetida pela cultura que lhe permite uma historização, um lugar em um sistema temporal que abrirá os caminhos para os adiamentos, as postergações, enfim, as transformações necessárias para a obtenção dos fins socialmente aceitáveis. Se ante a primeira experiência de satisfação e tendência a sua eterna repetição não surgisse o Outro provocando cortes e desvios de percursos, essa experiência não poderia ser chamada de primeira, pois não haveria repetição - só é primeira porque esperamos uma segunda – e só pode-se repetir alguma coisa da ordem do que já acabou, senão se constituiria em um contínuo absoluto mortífero, um não tempo. É no adiamento da satisfação, na espera pelo alimento que não chega, que surge a idéia do tempo no psiquismo, simultaneamente à noção de espaço e de Eu. Os processos secundários (representação de palavra, identidade de pensamento, energia ligada) assim inaugurados darão uma saída à repetição absoluta alucinatória, permitindo a transformação da realidade externa ao sujeito que lhe impõe o adiamento da satisfação e em que achará os objetos de sua satisfação, que serão sempre incompletos já que a satisfação originária é irreproduzível. Entre a busca permanente do prazer originário e a adaptação à realidade governada pela linguagem, se impõe a lógica da flecha temporal. O Eu permanecerá sempre dividido. Então, princípio de prazer e princípio de realidade são processos psíquicos que não se anulam e gozam de temporalidades diferentes. Por um lado, teremos o processo primário que não aceita adiamentos, transformações, nem negatividades, tempo de repetição absoluta do mesmo; e processo secundário, princípio de realidade que impõe o tempo linear, procura a reiteração na diferenciação com o primário que, graças à substituição, possibilita o prazer, porém exige a espera, promove a recordação e produz a esperança. Tempo do inconsciente como tempo de repetição Em seu texto de 1915, O Inconsciente, Freud afirma que os processos inconscientes são atemporais, que não são ordenados, nem modificados em relação ao tempo. Mas, tratando-se de processos, fica difícil pensá-los sem movimento. Podemos considerar o tempo do inconsciente como tempo de repetição. Daquilo que, apesar de nossos esforços elaborativos, retorna sempre igual, parecendo fruto do destino, surpreendendo-nos e mostrando que alguma coisa que não controlamos acontece e que, às vezes, seria melhor poder esquecer. O inconsciente não é atemporal, é uma história que não se reconhece como tal. Não está fora do tempo, senão que é regido por um outro tempo que, no presente constante de suas diferentes inscrições, rechaça o tempo do consciente, do secundário e se impõe como repetição. Mas na consciência, a temporalidade é outra. Ela se constrói sobre uma ilusão de linearidade. Acredita-se que a partir do presente pode-se avaliar o passado, retificá-lo e projetar o futuro. Esse é o movimento da historicidade humana, que cria subjetividade e preserva a identidade, dando um sentido de permanência. Ter uma história é guardar na memória uma versão (compartilhada, mas sempre pessoal) de uma seqüência de acontecimentos significativos da existência; seqüência que outorga idéia de causalidade ou destino e permite descobrir movimentos, mudanças, giros inesperados, mas também permanências, repetições, modos, estilos. O que permanece e o que muda na constante construção de identidade contínua, “construção do Eu pelo Eu”, como diz Piera Aulagnier, movimento temporal ininterrupto que constitui o “projeto identificatório” do qual depende a existência do sujeito. A constituição do Eu é a entrada em cena de um tempo histórico que lhe assegura um saber sobre si mesmo e sobre seu futuro. Cria-se, então, um “compromisso identificatório” do qual o Eu será o grande redator. Nesse compromisso, uma parte de suas cláusulas não deverá mudar para garantir a identidade, enquanto outras deverão ser sempre modificáveis para assegurar a permanência dessa instância. Esta história construtora de instâncias é a que interessa à psicanálise, é uma história sempre atualizada, uma leitura que o sujeito faz hoje dos fatos do passado, leitura que provoca efeitos e é transformada no seu acontecer, que cria as vicissitudes da subjetividade ao longo do tempo, aquilo que se constitui como a sua “verdade”. Efeito de posterioridade que não é uma simples ação diferida no tempo, não é o retorno idêntico do passado, uma vez que este não é um acúmulo de recordações depositadas em algum lugar, à espera de um estímulo qualquer; pelo contrário, é uma reconstrução realizada no presente do que foi vivido no passado. Assim, a memória não responde pela ratificação do passado e sim pela construção do presente. O passado não existe se não for lembrado, e só o será se a partir do presente for chamado a construir um sentido para a identidade. O ser humano, diferente do animal, sabe que vai morrer, sabe que é finito e tenta desesperadamente negar essa idéia, embora não faça mais que confirmá-la nas intermináveis tentativas de planejamento de sua vida. Apesar dessa certeza, e de ela estar sempre presente, é só no tempo do envelhecimento que ela adquire a conotação do iniludível. A forma especial em que isso seja vivido dependerá das características de cada sujeito e das diferentes experiências de proximidade com a morte; vivenciadas por ele ao longo de sua vida. Proximidades que, como sabemos, são experiências no árduo trabalho de elaboração de perdas, luto necessário para a substituição de objetos e a continuação dos investimentos que possibilitem a vida. Existem casos em que essa elaboração parece não ser possível. E aqui entramos no campo do traumático, daquilo que, pela sua intensidade e modalidade de inscrição, não pode ser retomado na posterioridade, aquilo que se constitui como um resto de impossível elaboração e que marca os limites e é o grande desafio de qualquer psicoterapia. O inominável que não se representa simbolicamente e só pode ser atuado no corpo. Seguindo esta linha de pensamento, podemos pensar a demência senil como efeito do traumático sobre o processo identificatório, pensá-la como uma via regressiva do desenvolvimento humano que afasta o ego através da interrupção da comunicação com os outros e o isola no esquecimento mais mortífero, pois constitui a morte da própria identidade. Falta de elaboração que pode ser razão suficiente para levar um sujeito pelo caminho sem retorno do esquecimento mais radical e violento, que impede o sucesso de um processo elaborativo da perda. Domínio da Pulsão de Morte. Nesse caso, é legítimo pensar que a especificidade da demência – em que o sujeito historicamente constituído se perde - não estaria dada por um déficit orgânico que afeta a memória como função neurológica, e sim por um transtorno de identidade que tem efeito sobre a memória como função historizadora. Nas demências, observamos que, em primeiro lugar, perdem-se as representações de palavras e depois as representações de coisas. O sujeito quer dizer algo, nomear alguma coisa que sabe o que é e para que serve, mas faltam-lhe as palavras. Começa assim uma espécie de desconstrução psíquica que avança afetando a memória, os vínculos e, finalmente, todo o campo do simbólico. Realiza-se um “desinvestimento” do mundo exterior sob a forma de uma indiferença generalizada. Apesar disso, não são raros os casos de súbitas demonstrações de interesse em situações e objetos cuja escolha, de fato, não é aleatória. Então, com uma escuta atenta e interessada, observamos uma tentativa de reatualização do passado no presente, mas não como acontece na reminiscência, que é uma forma elaborativa, senão como atualização idêntica ao que já foi, como se o tempo não tivesse passado, como um tempo de repetição, sempre o mesmo, tempo em suspensão. Última e desesperada tentativa da pulsão de vida de conservar uma identidade. Podemos dizer que estamos na presença de um funcionamento psíquico primarizado, cujas alucinações - como forma primária da satisfação do desejo - são muito freqüentes (neste ponto acredito ser necessário pensar a questão das amências tal como foi pensada por Meynert e Freud). Para pensar ainda mais a questão do sujeito, lembremos que Lacan fala de um “tornar-se” sujeito. Se há um estranho que fala por nós, que nos faz dizer o que não queremos, alguma coisa que parece externa, mas incomoda como própria; tornar-se sujeito será tomar essa alteridade para si, implicar-se na estranheza, excluir as causas do destino e se apropriar dessas vicissitudes, fazendo a passagem de objeto a sujeito do próprio destino, causa da própria existência, no processo de subjetivação. Então o sujeito será dinâmico, móvel, sempre mutante, passível de diversos posicionamentos. O sujeito não será a cristalização de imagens ideais, e sim o surpreendente sobre “si mesmo”. O sujeito se descobrirá ali onde não sabia que estava. O sujeito irrompe quando ante uma surpresa sobre si mesmo pode se perguntar “mas eu fiz isso?”. Podemos ver que tornar-se sujeito é ir além do registro imaginário do eu. É ter um posicionamento em relação ao Outro, ou melhor, uma postura em relação ao desejo do Outro, e aqui já estamos falando da ordem simbólica. Tornar-se sujeito é assumir a clivagem, o que interrompe nossa onipotência, é ser cindido, barrado e, ao mesmo tempo, estar sempre tentando superar esta situação sabendo antecipadamente do inevitável fracasso. E isto não se faz sem sofrimento, por isso às vezes parece tão fácil fugir do simbólico. Antes de uma criança nascer, ela já é falada, é nomeada com palavras que estão na cultura. Quando nasce, seus sentimentos e condutas são nomeados pelos Outros - geralmente os pais. Terá frio, calor, raiva ou dor; ou será encantador e amoroso, sempre interpretado e definido pelos Outros. Assim, a criança encontrará um mundo de palavras já pronto ao qual adaptará seus sentimentos (e sempre haverá um resto inadaptável) e usará as palavras que a cultura lhe oferece (e sempre faltarão palavras). É por essa razão que dizemos que a criança nasce alienada na linguagem, que é a linguagem do Outro que se impõe. Mas, como é fácil deduzir, essa é uma luta desigual. A criança - que ainda não é sujeito - submete-se, “assujeita-se” ao outro já que dele depende para viver. Na alienação, a criança aceita ser representada por palavras. Se a criança nasce é porque em algum momento e por alguma razão foi desejo de alguém que isso acontecesse. Os pais, não importam por qual motivo, desejaram o nascimento desse filho. O sujeito nasce causado pelo desejo do Outro. Alienado e sujeitado, haverá de se tornar sujeito, a não ser que por não permitir ser sujeitado pelo Outro e alienado na linguagem se torne um psicótico. Ora, se é possível não se tornar sujeito, é possível também deixar de sê-lo, seja por pequenos períodos ou de forma permanente, já que é condição do sujeito a falta de estabilidade e permanência. Para Fink, o sujeito psicanalítico tem duas faces: o sujeito como precipitado e o sujeito como furo. O sujeito como precipitado nada mais é que a sedimentação de sentidos dados pela substituição de um significante por outro. Mas é sedimentação, algo que permanece rígido, é objeto do desejo do Outro. O sujeito como furo é o caminho aberto entre os significantes, que abre as possibilidades de ligação e pode se desamarrar dos sentidos – o que implica em movimento - criando um furo no real, situação não pouco angustiante em que o sujeito aparece metaforizando essa falta de sentido. Não é um precipitado sedimentado, e sim uma precipitação, um movimento. Mais do que um movimento, é apenas um lampejo que cria uma metáfora, que substitui um não-senso por um novo sentido que produzirá uma ilusão de persistência e continuidade (muito frágil, certamente). Assim, podemos pensar que a perda de memória na demência seja uma falha na metaforização, uma impossibilidade de encadeamento de significantes. Impossibilidade de outorgar novos sentidos à vida, de produzir pensamentos e idéias, de encaixar uma série de significantes dentro de outra série e criar assim um novo significado. Uma recusa a compreender. O sujeito pode negar-se a compreender, a lembrar, a subjetivar. Esse velho sujeito, que no dizer popular “volta a ser criança” – com toda a carga de preconceito que isto encerra –, pode finalmente triunfar sobre a sujeição ao outro, abandonando sua posição de sujeito. Podemos pensar que, ante uma situação não passível de elaboração - de metaforização - renuncia a ser sujeito e de alguma maneira passa a usufruir o ganho de não sê-lo. Nesse sentido, volta a “ser criança”, onde em todo caso o discurso do Outro não o atinge com toda sua força, e onde ao mesmo tempo exige do Outro uma mudança radical quanto ao sistema de linguagem em que é inserido. Como “criança”, finalmente, poderá se aproximar mais da experiência primária de satisfação, poderá esquecer que essa recuperação é impossível. Se o objeto procurado é constituído pelos restos que escapam da simbolização, a demência pode ser considerada uma lembrança: tentativa radical de reencontro com o objeto perdido. Nessa minha tentativa de um certo entendimento sobre as demências, pergunto-me muito sobre a diferença com as psicoses. Se a psicose é o fracasso em se tornar sujeito, a demência representaria o abandono desta condição. Ao abandono de todo processo de subjetivação sobrevive um Eu primarizado, que é capaz de responder ao nome próprio, porém incapaz de dizer “eu”, nem “eu fiz”, nem “me aconteceu”, não ao menos relacionado com um tempo de presente compartilhado. Há então um retorno a um tempo de “dependência” anterior ao tempo da linguagem e do pensamento. O Outro internalizado, porém estranho, finalmente pode ser desligado, desautorizado em uma espécie de morte psíquica. O Outro deixa de existir como tal, a lei e a linguagem se esquecem. Tudo se reduz a experiências não simbolizáveis, portanto extremamente fortes, imediatas, fragmentadas. Nesse contexto, é fundamental considerar a magnitude dos investimentos que a cultura faz na constituição do sujeito. Devemos pensar quais as possibilidades de investimento libidinal que um idoso tem quando já próximo do fim da vida; não encontra objetos dignos de substituir os perdidos e deixa de ser objeto de investimento. Devemos pensar como a marginalização do idoso (presente até nos melhores projetos de atendimento conhecidos na atualidade), pautada pelos preconceitos sociais, provoca situações de abandono em que a retração libidinal pode se constituir como a única forma de saída. Saída do universo dos intercâmbios energéticos com o mundo, tal como entendida por Freud em Luto e Melancolia: um estado de ânimo profundamente doloroso, o cesse do interesse pelo mundo exterior, a perda da capacidade de amar, a inibição de todas as funções e a diminuição do amor próprio. Esta definição adapta-se perfeitamente ao que observamos nos estágios inicias da demência. Outra hipótese a considerar é a da demência entendida como uma fuga da depressão. Haveria uma perda não metaforizada, não tramitada, que provocaria uma dor insuportável ante a qual o sujeito “decide” literalmente esquecer que o mundo existe. E esquece. Novas perguntas se instalam. Como pensar psicopatologicamente as demências? Como pensar os mecanismos de defesa? O que acontece com a sublimação? Devemos pensar a partir de “ausências” ou aceitar o confronto com uma produção psíquica que nos propõe outro tipo de funcionamento, outro tipo de escuta, uma escuta de um discurso sem palavras?
Referências AULAGNIER, P. “Los dos principios del funcionamiento identificatorio: permanencia y cambio” in: Cuerpo, historia, interpretación. Buenos Aires: Paidós, 1994. CATULLO GOLDFARB, D. Corpo, tempo e envelhecimento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998. FINK, B. O sujeito lacaniano: entre linguagem e gozo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. FREUD, S. Todos os textos citados são da Amorrortu Editores, Buenos Aires, 1998. ______________ 1895 - Proyecto de una psicología para neurólogos. Vol. I ______________ 1892-99 - Fragmentos da correspondência com Fliess. Vol. I ______________ 1898 - Sobre el mecanismo psíquico de la desmemoria. Vol. III ______________ 1899 - Sobre recuerdos encubridores Vol. III ______________ 1901 - Psicopatología de la vida cotidiana. Vol. VI ______________ 1914 - Recordar, repetir, elaborar. Vol. XII ______________ 1915 – Lo Inconsciente. Vol. XIV GARCIA-ROZA, L. A: Introdução à metapsicologia freudiana Vol.1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. _______________________________ Delia Catullo Goldfarb - Psicanalista, gerontóloga. Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP, doutoranda do IP-USP. Membro do Núcleo de Estudo e Pesquisa do Envelhecimento NEPE- PUC-SP. Autora de “Corpo, Tempo e Envelhecimento”, Casa do Psicólogo, SP,1998. |