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Morreu de morte matada ou morreu de morte morrida?

Por Sueli Bortolin[1]

Memorial

Eu tive um avô materno muito bem-humorado e era comum, quando alguém anunciasse alguma morte, ele perguntar: “morreu de morte matada ou de morte morrida?” Era uma expressão popular e o tom jocoso fazia com que a notícia sobre a “indesejável” ficasse mais leve.

A morte era um assunto sempre presente nas conversas da família, pois os adultos que me rodeavam, em sua maioria, estudavam e discutiam as obras de Allan Kardec,[2] portanto, pela própria filosofia kardecista, a morte era tratada com naturalidade.

Extrapolando os limites do lar, minhas reminiscências da pré-adolescência, me fazem lembrar do poemaPlutão” de Olavo Bilac contido no meu livro didático do ginasial.[3] O poema narra a história de Carlinhos, um menino que adoece e morre e em conseqüência disso, seu cachorro entristecido permanece no cemitério ao lado do túmulo definhando até morrer. Recentemente “reencontrei” esse poema musicado por Hélio Ziskind no disco infantil - “Meu meu querido ”.

Voltando a minha trajetória, com o passar dos anos, já na fase adulta e após ter cursado Biblioteconomia, tive contato com uma multiplicidade de livros infantis, o que me levou a observar que o tema morte era escasso na literatura infantil brasileira. Percebia, por exemplo, que editoras espíritas abordavam a morte nos livros para crianças, de forma assustadora, mas abordavam; e que para as demais editoras, mais do que o tema sexualidade, o tema morte ainda era um tabu.

A morte e a literatura infantil

Na atualidade alguns autores têm estado sensíveis a essa temática, mas de maneira incipiente, assim o assunto morte encontra-se ausente na literatura infantil brasileira.

Rosemberg (1985, p.65-66) também defende a ausência do tema morte na literatura infantil brasileira, quando afirma ser mais comum encontrá-la na literatura infanto-juvenil e “[...] a serviço da trama, aquela que elimina personagens indesejáveis, ou a morte como castigo e punição. Porém, a morte necessária, visceral, dramática e angustiante, praticamente inexiste”.

Creio que a morte assusta porque homens e mulheres têm medo da finitude e conseqüentemente se sentem impotentes por não conseguir tornar a vida infinita e que, no caso da literatura infantil, esse medo resulta em uma falta de tradição dos escritores (quase todos, adultos) em lidar com suas angústias em relação à morte. Isso nos parece preocupante, pois uma pessoa pode alterar diferentes situações de sua vida, seja ela: financeira, física, emocional ou espiritual, mas a morte... A morte é a única situação que não temos como evitar em nossas vidas, um dia ela acontecerá fatalmente. Portanto, não falar sobre o assunto, ou seja, “proteger” a criança, poderá dificultar o seu entendimento sobre o ciclo da vida.

Logicamente que não proponho uma conversa planejada de maneira dramática, catastrófica e deprimente, acredito sim que a morte deve ser tratada espontaneamente, cotidianamente e de uma maneira até humorada. Mas o que acontece, por exemplo, é o uso dos “[...] eufemismos que ajudam a disfarçá-la [...] dentro do contexto hospitalar, o paciente não morre: expira, se perde na mesa, vai a óbito, é paciente com síndrome de JEC (Jesus está chamando)” (MARANHÃO, 1987, p.11).

Pior é “fazer da morte e do morrer um tabu [pois] ao afastar as crianças das pessoas que estão morrendo ou já morreram, estamos incutindo nelas um medo desnecessário” (KÜBLER-ROSS, 1975, p.31). Destaco, porém, que isso não significa que a criança deva ser levada, ou seja, obrigada, como acontece em muitos velórios a ver e beijar um defunto para obedecer e agradar um adulto, sem desejá-lo.

Pior ainda, é negar às crianças certas informações e curiosidades, certos porquês [são] omitidos e apagados. Uma certa ordem “natural”, nas coisas, nos seres, nas ações dos homens, aparece, então, quase que como resultante de um acordo entre atores: “eu faço de conta que isto não me interessa e você faz de conta que isto não lhe interessa. Deste modo, problemas existenciais fundamentais – como a vida e a morte – não são discutidos” (ROSEMBERG, 1985, p.64-65, grifo nosso).

Numa sociedade em que o acesso à informação está cada vez mais facilitado, “as crianças, desde cedo, têm noções do processo de reprodução, portanto [...] quando sentem a falta de alguém que morreu logo tal ausência é justificada por uma viagem longa para um lugar maravilhoso” (CARVALHO, 1999, p.5), essa postura acaba sendo um contra-senso.

Não podemos evitar o contato da criança com os problemas existenciais. Nesse sentido Bettelheim (1980, p.14-15), defende: “[...] que lhe sejam dadas sugestões em forma simbólica sobre como ela pode lidar com estas questões e crescer a salvo para a maturidade. As estórias ‘fora de perigo’ não mencionam nem a morte nem o envelhecimento [...]”. E essa ausência pode comprometer emocionalmente a criança, visto que o “encontro” com temas que lhes causam medo, é a primeira etapa para vencê-lo.

Gostaria de acrescentar aqui a história de um amigo que, assim como eu, tinha um avô bem-humorado. Todas as vezes que tocava o sino da igreja anunciando a morte de alguém da comunidade, ele dizia: “que bom que estamos ouvindo o sino! Se não estivéssemos[...]”

Sendo a morte encarada de maneira igual ou diferente pelas pessoas e pelas culturas, é necessário que se tenha em mente, que há tantas espécies de vida, tantas possibilidades de morte... [portanto] é fundamental discutir com a criança, de modo verdadeiro, honesto, aberto, como isso acontece e como poderia não acontecer... Compreender a morte como um fechamento natural dum ciclo, que não exclui dor, sofrimento, saudade, sentimento de perda (ABRAMOVICH, 1989, p.113).

Assim, a ausência na literatura infantil, do assunto morte, pode conotar o medo, a angústia e o conflito, muitas vezes “inassumido” do adulto sobre o tema, porém é necessário que essa situação seja encarada com naturalidade e maturidade.

Morte: dor e humor

Os autores quando abordam a morte nos livros infantis, criticam a destruição da natureza: rios, árvores derrubadas, animais extintos..., porém a morte do Humano é mais rara.

Aqui comentaremos sobre duas obras que se referem a morte do Ser Humano. Uma com uma abordagem entristecida e outra em que a morte é abordada de maneira bem-humorada.

Abordagem entristecida

O escritor e cartunista Ziraldo Alves Pinto lançou o livro – “Menina Nina: duas razões para não chorar pela Editora Melhoramentos. A personagem principal é uma menina chamada Nina que se angustia pela morte de sua avó Vivi. A história foi inspirada na vida real da família de Ziraldo. Ele ficou viúvo dois anos, quando sua esposa Vilma, durante o sono morreu em decorrência de um infarto.

O livro é uma tentativa de explicar a morte, para sua neta Nina de 9 anos. Na página 27, por exemplo, o autor relata: “quando a porta do seu quarto foi aberta finalmente com força e ansiedade, lá dentro, Vovó dormia serena como viveu. Vovó dormia para sempre”.

“Menina Nina”, é um livro triste, comovente e esperançoso, pois deixa nas páginas finais, duas possibilidades ou duas razões para não chorar: a primeira da vovó estar “dormindo pra sempre”, e a segunda de “despertar num outro mundo, feito de luz e de estrelas” (ZIRALDO, 2002, p.35-37).

Segundo Marthe (2002, p.102), Ziraldo “com enorme delicadeza, procura ensinar as crianças que, por mais duro que seja encarar a morte de uma pessoa querida, a vida continua”.

E que “dos dois jeitos desse adeus é que a gente inventa a vida” (ZIRALDO, 2002, p.37).

Abordagem Bem-humorada

Angela Lago é uma escritora mineira muito premiada no Brasil e no exterior. Seu livro “De morte” foi escrito em 1992 e publicado pela Editora RHJ. A autora anuncia na capa do livro que nele contém umconto meio pagão do folclore cristão”.

Ele narra a história de um velho alegre e esperto que, ao receber como recompensa o direito de fazer três pedidos, acaba enganando o Diabo e a Morte de uma maneira engraçada e divertida. A Morte, ele com muita conversa, consegue convencer a sentar em sua cama e ali ela fica grudada. Para o Diabo, ele oferece uma cachaça e manda-o sentar em uma cadeira, mas o Diabo, assim como a Morte, também fica grudado.

A história termina quando o velho cansado de viver e de tantas estripulias, resolve ir negociar com S. Pedro, a sua entrada no Céu. “Como o Diabo não queria ver o homem nem pintado de ouro, São Pedro não teve jeito, senão deixar o velho entrar”.

Esta é uma obra rara, pois a autora consegue lidar com o tema “sério” como a morte, com muita ludicidade e humor.

Considerações finais

Pudemos observar que as duas obras mencionadas abordam a mesma temática de forma diferente. No entanto, não significa que uma exclui a outra, ou seja, devemos possibilitar uma leitura plural às nossas crianças, pois é necessário que elas, não apenas tenham contato com diversos temas, mas também que um mesmo tema seja abordado de diferentes ângulos.

Em especial, porque “a morte pertence à própria estrutura essencial da existência [...]”. Assim que um homem começa a viver, tem idade suficiente para morrer. Não caímos de repente na morte, porém caminhamos para ela passo a passo: morremos cada dia” (HEIDEGGER apud MARANHÃO, 1987, p.69).

Preparar as crianças para lidar com a morte, não significa ficar o tempo todo falando sobre o assunto. Devemos falar de tudo com as crianças, porém com bom senso e sem exageros.

Finalizando: não esgotamos o assunto, pelo contrário tivemos a pretensão de que esse texto seja o estímulo para outras reflexões e investigações.

Referências

ABRAMOVICH, Fanny. Literatura infantil: gostosuras e bobices. São Paulo: Scipione, 1989. (Série Pensamento e Ação no Magistério, 7).

BETTELHEIM, Bruno. A Psicanálise dos contos de fadas. 7.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. (Coleção Literatura e Teoria Literária, 24).

CARVALHO, Cláudia Ezídgia de. A Presença da morte na literatura infantil do Brasil. In: CONGRESSO DE LEITURA DO BRASIL, 12., 1999, Campinas. Anais... Campinas: ALB, 2001. 1 CD.

HEIDEGGER, Martin apud MARANHÃO, José Luiz de Souza. O Que é morte. 3.ed. São Paulo: Melhoramentos, 1987.

KÜBLER-ROSS, Elisabeth. Morte: estágio final da evolução. Rio de Janeiro: Record, 1975.

LAGO, Angela. De morte: um conto meio pagão do folclore cristão... Belo Horizonte: RHJ, 1992.

MARANHÃO, José Luiz de Souza. O Que é morte. 3.ed. São Paulo: Melhoramentos, 1987.

MARTHE, Marcelo. Machão, mas sensível. Revista Veja, São Paulo, v.35, n.34, p.102-103, 10 abr.2002.

ROSEMBERG, Fúlvia. Literatura infantil e ideologia. São Paulo: Global, 1985. (Coleção Teses, 11).

ZIRALDO. Menina Nina: duas razões para não chorar. São Paulo: Melhoramentos, 2002.

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Fonte: http://mundoquele.ofaj.com.br/Textos/Texto7.doc


[1] Professora do Departamento de Ciência da Informação – UEL.

[2] A obra de Allan Kardec discute substancialmente a vida após a morte e conseqüentemente a morte.[3] Período escolar correspondente ao ensino fundamental de 5a a 8a série.