Humor Links indicados Crônicas Cadastre-se!!! Links parceiros
Voltar
Imprimir Artigo
Cadastre-se

O direito de morrer

Por Daniel Chiozzini

O caso da norte-americana Terry Schiavo suscitou o debate sobre a eutanásia em todo o mundo. A decisão pelo desligamento ou não dos aparelhos que a mantinham viva estendeu-se pelos tribunais. Vários laudos técnicos foram usados na disputa judicial, além de funcionarem também como atenuante para a solução final: ela praticamente não teria sofrido durante os treze dias em que ficou sem água e comida até falecer, já que seu cérebro estaria comprometido a ponto dela não sentir mais dor, fome ou sede. O embate jurídico em torno da manutenção ou não da vida da paciente mostrou que a questão, do ponto de vista exclusivo da medicina e do direito, está longe de ter um ponto final. Nesse contexto, a ética e a filosofia podem contribuir de maneira significativa para um avanço das discussões e de critérios para decisões em torno do assunto.

Entre os médicos, o conceito de morte cerebral é padronizado e aceito internacionalmente. Ocorre quando um paciente encontra-se em um quadro de falência total do sistema nervoso central, caracterizável como irreversível. Já uma falência parcial do cérebro pode levar ao controverso conceito de “estado vegetativo”, quando existe um comprometimento das respostas do organismo aos estímulos nervosos. Mas, em muitos casos, o grau desse comprometimento é impossível de ser aferido e avaliado com exatidão. Desse modo, os argumentos de natureza estritamente técnica mostram-se insuficientes para decidir pela interrupção ou não da vida de uma pessoa que, por exemplo, vive com o auxílio de aparelhos. O debate ético em torno do assunto, que no Brasil é ainda incipiente, lança novos pontos de vista sbre a eutanásia.

“O que seria, no caso de Terry Schiavo, algo praticamente indolor?” indaga o filósofo e professor da Universidade de São Paulo (USP), Renato Janine Ribeiro. Para ele, na ciência, há um forte elemento amoral, ou seja, uma tendência de isentar-se de julgamentos morais e manter-se neutra. Tal característica é oriunda do fato que seus avanços, muitas vezes, já se confrontaram com valores considerados corretos pela sociedade na qual ela está inserida e se desenvolvendo. Um exemplo significativo pode ser situado nos primórdios dos chamados estudos científicos: “A ciência começou a fazer anatomia quando isso era um pecado mortal, uma entre muitas coisas que a religião desaprovava”, afirma. No entanto, Janine lembra que, embora a anatomia tenha sido fundamental para o progresso da medicina, os estudos anatômicos também foram feitos, por exemplo, em prisioneiros durante o século XVI: “Quando o rei Carlos IX, da França, foi ferido em um torneio, o médico dele, Ambroise Paré, recebeu vários presos condenados à morte para estudar possíveis tratamentos, e todos morreram nas experiências”, afirma. Assim, “é muito difícil dizer que o que hoje a moral condena não vá ser, dentro de um tempo, aceito”, completa.

Janine revela não ter uma opinião fechada sobre a eutanásia e que é cético em relação a uma possível solução ou regra única para definir em quais casos o paciente tem direito a morrer. Para ele, os cuidados médicos podem prolongar uma agonia por muito tempo ou assegurar uma morte limpa e sem dor, mas a decisão sobre isso não pode ser do médico. “Deve ser, em última análise, uma decisão da pessoa que há de viver ou morrer e, antes disso, uma decisão da sociedade”, diz. Deste modo, Renato Janine aponta para a necessidade de uma discussão ética sobre o assunto, incluindo os limites entre os direitos sociais e individuais, nos mais variados casos em que a eutanásia é cogitada.

A questão apontada pelo filósofo e a necessidade de um posicionamento da sociedade englobam o paciente que, conscientemente, opta pela morte. Trata-se de uma ocasião em que a discussão sobre os limites da autonomia individual é mais latente, uma vez que, em muitos casos, a pessoa manifesta o interesse por morrer antes do tempo que ela poderia ficar viva com auxílios técnicos da medicina ou até mesmo se curar. Embora também tenha dúvidas sobre a maneira adequada para decidir-se sobre a eutanásia nesses casos, Janine aponta um possível caminho para iniciar essa discussão: o respeito pelo direito da pessoa de não querer mais viver. Uma das maneiras de fazer isso é o diálogo com o indivíduo sobre a opção feita por ele e não simplesmente a tentativa de convencê-lo do contrário. Seria uma maneira de fugir de uma tendência de infantilizá-lo, como muitas vezes ocorre com os idosos. “Isto significa que, se uma pessoa não quer mais viver devido a um sofrimento intenso e irreversível, deve ter meios de poder abreviar sua vida, tal como exemplifica o filme Menina de Ouro, de Clint Eastwood”, conclui.

Também para o médico e filósofo Rodrigo Siqueira Batista, coordenador do Núcleo de Estudos em Filosofia e Saúde da Fundação Educacional Serra dos Órgãos (Feso), é imprescindível tornar essa discussão mais ampla. Para ele, a eutanásia não tem recebido a devida atenção da comunidade médica brasileira. Devido ao fato da sua prática ser considerada crime pelo artigo 121 do Código Penal, tem sido mantido um “espúrio pacto de silêncio” nas Unidades de Assistência à Saúde. Ele menciona que a decisão de interromper ou não a vida dos pacientes acaba por ser tomada às escuras, por profissionais habitualmente sem qualquer preparo para enfrentar a situação, muitas vezes à revelia dos familiares e do próprio enfermo: “Discutir e ponderar sobre ética e eutanásia, demarcando-se adequadamente os conceitos e enfocando-se os argumentos favoráveis e contrários à sua realização, torna-se fundamental para a formação laboral em saúde, bem como para o mais amplo exercício da cidadania, ao menos em sociedades laicas e plurais”, afirma.

Nesse sentido, Siqueira Batista entende que uma das ponderações importantes para essa discussão é a noção de finitude da vida, uma das marcas profundas da condição humana. “Desde tempos imemoriais, vêm sendo desenvolvidos modos para se lidar com a efemeridade da vida, como no caso das narrativas míticas gregas, por exemplo, nas quais deuses e homens eram distinguidos pela sujeição à mortalidade”, explica. Posteriormente, as religiões e a filosofia também desempenharam esse papel, e atualmente ele também vem sendo exercido pela ciência. No contexto atual, é imprescindível realçar a inserção da ciência como uma das modalidades de explicação da realidade: “Ainda que se torne possível um prolongamento da vida, a questão da sua finitude estará sempre enraizada na experiência humana de existir”, afirma. Segundo o pensador, “tornar-se imortal representa, em última análise, abdicar de ser humano”, completa.

Para Eduardo Cruz, chefe do Programa de Pós-graduação em Ciência de Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), um avanço sobre a questão da eutanásia está relacionada a uma aproximação equilibrada entre ciência e religião. “Ao ver a religião apenas como resquício de um passado de superstições e dogmatismo, alguns cientistas podem prejudicar a própria sociedade a quem querem beneficiar”, afirma. Ele procura realçar a lógica do pensamento religioso diante dos avanços da medicina, que permitem hoje a possibilidade de uma “sobrevida” do paciente com graves problemas de saúde. Ele diz que as religiões optaram, de um modo geral, pela naturalidade da vida e da morte dos seres humanos. “Meios de prolongar intoleravelmente a vida não são incentivados, enquanto o término antecipado da existência é condenado”, afirma. Essa postura contrária à eutanásia, segundo ele, advêm da impossibilidade de reversão do processo e do questionamento da objetividade do paciente e dos parentes em um momento de extrema emoção.

Para Cruz, outra questão presente no discurso religioso que critica a eutanásia é a idéia da inserção de cada indivíduo no fluxo da existência e da sociedade: “Esta concepção, de certa forma, vai contra o postulado da modernidade da soberania do indivíduo em tomar qualquer decisão”, afirma. Segundo o pesquisador, esse princípio não se restringe ao âmbito religioso, pois o direito e a moral contemporâneos, já apresentam limites ao poder de decisão do indivíduo. “Seja porque uma ação deste pode ter um impacto direto na vida social, como roubar, por exemplo, seja porque, aos poucos, essas decisões podem corroer o tecido social e o fluxo da natureza”, explica. Desse modo, o homem que reivindica o direito à eutanásia, definido como um indivíduo em face de um incômodo existencial, não deve ter sua vontade como único referencial: “Não há um direito sagrado a uma existência sem problemas”, afirma.

Já Rodrigo Siqueira Batista aponta também algumas perspectivas para desenvolver o debate sobre a eutanásia. A primeira delas seria recuperar o sentido originário da palavra eutanásia, literalmente “boa morte” (eu – regular/justamente //com bondade, benevolência; e tanatos – morte), livrando-a de ranços e seqüelas remanescentes da política nazista de extermínio, erroneamente traduzida por “eutanásia”.

A segunda perspectiva aproxima-se da posição de Eduardo Cruz. “É preciso uma profunda discussão acerca da autonomia do sujeito – possivelmente o mais poderoso argumento pró-eutanásia – na medida em que a autonomia individual, ainda que plenamente defensável, é sujeita a grande polêmica em termos do seu alcance, chegando-se, inclusive, a questionar a sua real existência”, afirma. O pesquisador cita filmes de ficção científica, como Gattaca e Brilho eterno de uma mente sem lembrança, nos quais a ciência desenvolve técnicas para moldar a personalidade e o fenótipo do ser humano. “Trata-se de uma fecunda discussão sobre livre arbítrio/ determinação para o âmbito da vida e o para o futuro da humanidade”, diz Batista.

Uma terceira perspectiva vai ao encontro da proposta de Renato Janine. Rodrigo Siqueira Batista afirma a necessidade de entender a eutanásia como um ato inscrito no paradigma da compaixão, segundo o qual o homem em processo de morrer deve ser acolhido, como um igual, em seus mais íntimos propósitos – independentes de serem livres ou determinados – ainda que estes se dirijam para a interrupção da própria existência. Mesmo que a compaixão esteja sendo pouco prestigiada nas reflexões contemporâneas, ele afirma que integrá-la aos demais fios que compõem o grande tecido dos debates sobre a eutanásia é uma forma de olhar e acolher o homem que morre, “um genuíno ato de fraternidade, permitindo-lhe, quiçá, a restituição da prerrogativa de sonhar com seus melhores dias de outrora”, conclui.

______________________________


Fonte: http://www.comciencia.br/reportagens/2005/05/03.shtml, 10/05/2005