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Tia
Oraide, 84,
alma
de
criança
Por
Gisela Kodja –
pesquisadora
mentora
Diretamente
para
o
Portal
Costumo
brincar
com
alguns
colegas da PUC/SP dizendo
que
Santos
é o
centro
do
universo.
Além
da
beleza
natural,
do
clima
e
ambiente
agradáveis,
temos no
nosso
repertório
de
sucessos
algumas
experiências
interessantes nas
áreas
da
saúde,
do
serviço
social
e da
educação.
Muitos,
inclusive,
se transformaram
em
referência
nacional
e
internacional.
No
entanto,
a
piada
só
se
sustenta
no
campo
do
bairrismo.
Estamos
longe
do
título
de
cidade
mais
importante
do
planeta.
Mas não posso deixar de me orgulhar de alguns tesouros que
guardamos nessa pequena ilha e vou aproveitar a oportunidade que me foi
oferecida para jogar luz sobre um deles: Tia Oraide.
Trata-se de uma
jovem
senhora de
vida
longa;
proprietária, há
três
décadas, de uma
escola
infantil
chamada
Flauta
Mágica;
que
se dedica ao
estudo
da antroposofia
há
outros
tantos;
e, diz,
que
pretende
continuar
entre
crianças
até
uns
cento
e
poucos.
Não
vou
falar
aqui
de uma
pessoa
comum,
professora comportada.
Tia
Oraide é
sempre
o
contrário
de
tudo
o
que
se pode
esperar
porque
gosta
de
fazer
as
coisas
à
sua
maneira
e,
verdade
seja
dita,
ela
nunca
escolhe
caminhos
convencionais
para
realizar
nada.
Por
conta
disso, é daqueles
tipos
que
surpreendem e decepcionam, fazem
rir
e arrancam
lágrimas,
ficam
por
perto
e se afastam. Magnetizam.
Assim, ex-alunos que hoje estão com treze ou catorze, aqueles
com mais ou menos vinte e, mesmo, os que beiram os quarenta anos frequentemente
aparecem na escola para pedir um palpite, dividir alguma vitória ou ajudar a
organizar a quermesse. Isso, sem contar os que já têm filhos por ali.
Como
sempre
evitou os
modelos,
Tia
Oraide vive lutando
para
ser
compreendida. Na
era
das
escolas
azulejadas, super-equipadas, esterilizadas a Vaporetto,
Tia Oraide insiste
em
conservar a
Flauta
Mágica
com
cara
de
casa
da avó. Daquelas
que
tem
quintal
enorme
com
árvore
de
frutas,
parquinho
com
brinquedos
feitos
com
toras
e
que
cheira
a
pão
com
geléia
lá
pelas 3 da
tarde.
Computador?
Tem
sim,
senhor!
O
pai
de
alguém
tinha
um
teclado
velho
e resolveu
deixar
na
escola.
Quem
disse
que
a
informática
não
passou
por
ali?
O
tal
teclado
é
marimba,
depois
vira
piano,
é
painel
de
controle
de uma
nave
espacial
e, de
vez
em
quando,
até
dá uma de
computador.
O
que
ele
vai
ser
naquele
dia,
não
importa. Interessa,
mesmo,
é
saber
se o
tempo
vai
ficar
bom
pra
todo
mundo
ir
lá
pro
fundo
ver
a
Tia
Oraide
queimar
folhas
secas.
Isso,
sim,
é
diversão,
mas
pouca
gente
entende.
Quando
minha
filha
Giulia
era
pequena,
eu
me
pus
a
procurar
a
escola
ideal,
que
estivesse à
altura
da
minha
bonequinha. E fui
parar
na
Flauta.
Tia
Oraide
me
recebeu
com
alegria,
como
se fôssemos velhas amigas e foi
me
mostrando
tudo
com
entusiasmo.
Parou
diante
do
piano
e anunciou: “Este
é o
nosso
orgulho.
Eu
venho
para
cá
com
as
minhas
crianças
no
final
da
tarde
e cantamos
até
que
o
último
aluno
vá
embora.
Eles
conhecem
cantigas
de
roda,
músicas
do
folclore
brasileiro
e adoram.
Criança
não
precisa
aprender
a
rebolar
para
ser
feliz,
não
é
verdade?”.
Subimos as
escadas e, na
curva,
um
espelho refletiu os
meus
joelhos. “É
para
que
eles possam se
ver rindo, chorando,
crescendo,
mudando.
Assim,
cada
um
vai conhecendo as
suas
caretas”.
O
quarto
de
fantasias
foi a
primeira
parada.
Estava
tudo
daquele
jeito
meio
bagunçado,
como
sempre.
Centenas
de
trajes
pendurados,
caixas
de
máscaras,
varinhas de
condão,
coroas,
chapéus,
tinha
de
tudo.
As
crianças
podem
entrar
ali
qualquer
hora,
se
vestir
de
fada
ou
de
bruxa,
de
leão
ou
de
borboleta.
Naquele
espaço,
cada
um
vira
o
que
quiser
virar
e se o Tiago
cruzar
com
a
Tia
Oraide
pelo
corredor
vai
ouvir:
“Olá
Sr.
Jacaré,
como
tem
passado?”.
Na
Flauta,
ninguém
desmente
ninguém.
Entramos
em
outra
sala,
ampla, iluminada
por
enormes janelões,
onde havia
um
berçário de
pequenos
animais. Na
ocasião, uma das professoras e
sua
turma
estavam vendo
crescer
um
filhote
de
lagartixa,
observando a transformação de uma
lagarta
e
alimentando
minúsculos
peixinhos nascidos há
poucos
dias.
A
mobília
chama
a
atenção.
Reparei
que
as
carteiras
e
prateleiras
são
de
madeira
pintadas nas
cores
primárias.
Segundo
Tia
Oraide, “Não
é
só
uma
questão
de
escolha,
tudo
isso
faz
sentido
para
as
crianças”.
De
repente, uma delas
veio chorando e se agarrou nas
pernas
de
Tia
Oraide dizendo: “Hoje
é
meu
dia
de
guardar
os
brinquedos,
mas
a
porta
da
minha
classe
está fechada, a
luz
apagada
e
eu
tenho
medo
de
escuro!”.
Tia
Oraide se ajoelhou, secou o
rosto
da
menina
e,
bem
baixinho, recitou:
“Menina,
se
queres,
vamos,
Não se ponha a imaginar.
Quem imagina cria medo
E quem tem medo não vai lá”.
Tia
Oraide levantou-se e fez
um
sinal
para
que
eu
a seguisse.
Não
consegui
conter
o
meu
espanto
e perguntei se
ela
não
tinha
pena
de
deixar
a
menina
assustada,
ali
no
corredor.
“Ela
não
vai
ficar
ali,
minha
querida,
ela
vai
entrar
na
sala
e
guardar
os
brinquedos”.
De
rabo
de
olho,
pude
ver
que
ela
foi,
mesmo.
Seguimos na
direção do
barulho. No
fundo da
casa,
um
bando de
crianças cavoucava a
terra, algumas brincavam no
balanço
e,
debaixo
da
mangueira,
duas delas giravam os bracinhos esticados,
para
um
lado
e
para
outro,
como
se estivessem equilibrando uma
gota
d’água.
Tia
Oraide
tinha
me
deixado
sozinha,
para
atender
um
garotinho
que
precisava de
ajuda
para
escovar
os
dentes.
Resolvi
me
aproximar
para
ver
o
que
chamava a
atenção
das duas meninas
que
estavam sentadas na
sombra
da
árvore.
Quando
viram os
meus
olhos
arregalados, as duas caíram na
gargalhada,
dizendo “Elas
não
mordem”. Duas
lagartas
se arrastavam
sobre
a
pele
das meninas e,
enquanto
elas
demonstravam
muita
intimidade
com
o
verme,
eu
deixava
evidente
o
meu
pavor.
Tia
Oraide voltou
com
um
ar
maroto,
se divertindo
com
a
situação.
“Noutro
dia,
um
senhor
desistiu de
trazer
o
seu
menino
para
mim
quando
viu as
crianças
brincando
com
as
centopéias.
Mas
não
se preocupe,
elas
são
inofensivas e convivem
conosco
há
mais
de 30
anos”.
Se é
assim...
No
meio da
tarde,
um
cesto
enorme foi colocado
sobre a
mesa
que fica no
meio do
pátio. As
crianças pegam o
lanche na
mochila e colocam
ali.
Cada
um escolhe o
que
quer
comer
porque
nada
é de
ninguém
e
tudo
é de
todos.
Escolhi
um
pequeno
pacote
de
biscoitos,
só
para
participar
da
festa.
Anita passou
por
mim
e avisou: “Cuidado
com
o
último,
é o
que
a
Tia
Oraide
mais
gosta
e
ela
vai
roubar
de
você”.
Rapidamente coloquei a
bolacha
na
boca
e
ela
suspirou aliviada “Ufa!
Que
sorte.
Ela
não
viu”. A
menina
sentou do
meu
lado
e
eu
aproveitei
para
puxar
assunto.
Fiz
um
comentário
sobre
as
crianças
especiais.
Disse
que
tinha
percebido
como
ela
havia se
preocupado
em
servir
o
lanche
de
um
amigo
que
tem
um
pouco
de
dificuldade.
Anita
me
corrigiu
imediatamente:
“Ele
não
tem
dificuldade,
só
precisa
de
um
pouquinho de
ajuda!”.
Aquela
visita
que
eu imaginava
fazer
em uma
hora, levou uma
tarde
inteira. Acabei pintando, bordando, cantando e desenhando.
Todos
pareciam
alegres
com
a
minha
presença
e tentavam
me
ajudar
a
fazer
coisas
tão
simples
e delicadas
que
a
pressa
instalada no
meu
coração
já
nem
me
permitia
lembrar
o
prazer
que
elas
trazem.
Depois
de
tudo,
Tia
Oraide pediu
para
que
as
crianças
deitassem no
chão
e fechassem os
olhos
para
“Ouvir
o
silêncio”.
Aos
poucos,
elas
foram relaxando, respirando
calmamente,
até
que
o
som
do
piano
anunciou o
fim
de
mais
um
dia
na
Flauta.
Saí dali
leve,
segura,
com a
certeza de
que
era aquela
felicidade
que
eu queria
que a Giulia vivesse
todos
os
dias.
Felicidade
oferecida a
crianças
com
até
sete
anos
por
uma
mulher
de 84,
cuja
imensa
generosidade
transforma essa
distância
em
um
lugar
de
convivência
afetiva
sem
tamanho.
Onde
toda
a
forma
de
ser
é
possível;
a
comunicação
é
direta
e
honesta;
as
diferenças
e os
limites
não
têm
espaço;
e o
amor
é o
grande
referencial.
Eu
e
minha
família
ficamos na
Flauta
Mágica
um
bom
tempo
e levamos
muitos
amigos
até
lá.
Alguns,
com
coragem,
perceberam
que
toda
aquela
confusão
ia
acabar
dando
certo.
Assim
como
nós, acreditaram numa
escola
sem
televisão,
sem
refrigerantes,
sem
filmes
da Disney.
Ali
se
conta
história
e se faz
história.
É
assim
que
a
Tia
Oraide
deixa
os
filhos
da
gente
prontinhos
para
a
vida.
Antroposofia – É uma
pedagogia
holística
que
trata
da
concepção
do
ser
humano,
levando
em
conta
as
diferenças
características
das
crianças
e
jovens,
segundo
a
idade
aproximada. O
ensino
é
dado
de
acordo
com
essas
características:
um
mesmo
assunto
nunca
é
dado
da
mesma
maneira
em
idades
diferentes.
Para
mais
informações,
consulte o
site
da
Sociedade
Antroposófica no Brasil:www.sab.org.br.
Fonte
das fotos: Marcos Piffer
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