Resenha Por Rosângela Digiovanni (*)
Família e envelhecimento, de
Clarice Ehlers Peixoto. Editora: Fundação Getúlio Vargas. 144 páginas Família e envelhecimento”, organizado por Clarice Ehlers Peixoto[1], é um livro estimulante por reunir artigos que evidenciam as múltiplas experiências relacionadas à velhice e ao envelhecer. As diferentes perspectivas de análise e a diversidade de questões investigadas pelos autores que integram este livro-coletânea ressaltam os muitos desafios e possibilidades de novas interpretações proporcionadas pelo processo de envelhecimento nas sociedades contemporâneas. Na introdução, Clarice Ehlers Peixoto ressalta: “De envelhecer ninguém escapa”. No entanto, se o envelhecimento é, em princípio, comum a todos, o processo de envelhecer é marcado por diferentes modos de se vivenciar esta experiência. “Alguns envelhecem mais rapidamente do que outros e nem todos vivem esse processo da mesma maneira, uma vez que o envelhecimento está estritamente relacionado às condições materiais e simbólicas que identificam socialmente cada indivíduo. O processo de envelhecimento é, assim, diferenciado segundo o grupo social e o sexo a que pertencemos.” (Peixoto.2004 p.9). Os cinco artigos organizados pela antropóloga Clarice Ehrles Peixoto e reunidos no livro “Família e envelhecimento” analisam diferentes aspectos relacionados ao processo de envelhecimento e evidenciam a heterogeneidade dessa experiência. No primeiro artigo, “Velhice na contemporaneidade”, Myriam Moraes Lins de Barros analisa a constituição histórica da representação social de velhice no contexto da sociedade ocidental contemporânea, procurando mostrar como essa construção específica, própria da modernidade, acarreta também a elaboração da diferença entre os momentos do ciclo de vida – infância, juventude e velhice – como etapas singulares de uma mesma trajetória de vida. Na medida em que a construção da representação social da velhice é simultânea à elaboração da noção de indivíduo como um valor social e da noção de tempo como linearidade e história, a formulação das diferenças e singularidades das idades se dá no contexto da ideologia individualista. Fundamentada nessa ideologia e na interpretação contrastante entre juventude e velhice, são definidas e institucionalizadas as classificações das fases da vida, marcadas por valores diferenciais e desiguais para as diferentes idades. Considerando a complexidade da sociedade contemporânea, e baseada em pesquisas sobre mudanças e permanências de valores na família de camadas médias do Rio de Janeiro – na qual se constatava que os avós partilhavam valores individualistas e, simultaneamente, reafirmavam a importância da família como um valor social –, a autora questiona a percepção homogênea do individualismo na compreensão da experiência do envelhecimento e ressalta a velhice como uma etapa da vida que implica uma diversidade de sentidos e significados culturais, decorrentes das particularidades dos contextos sociais em que os indivíduos estão inseridos. Representações sociais diferenciadas relacionadas ao envelhecimento estão presentes no debate atual sobre as políticas públicas de proteção à velhice, marcado por controvérsias a respeito da moralidade ou legitimidade do Estado em assegurar direitos aos aposentados. Esse debate faz parte da análise de Júlio Assis Simões, em seu artigo “Provedores e militantes: imagens de homens aposentados na família e na vida pública”. A partir da reconstrução da trajetória recente das reivindicações políticas em torno do direito social à aposentadoria, o autor elabora suas reflexões privilegiando a retórica utilizada na construção da identidade social do aposentado como ator político. A constituição dessa categoria política específica envolve a elaboração de uma identidade interna solidária e competente na atuação da defesa de seus interesses comuns para fazer frente aos opositores: o Estado, os “políticos” e os trabalhadores da ativa que não valorizam as especificidades das reivindicações dos aposentados. Particularmente interessante na análise da constituição da identidade de militante é a incorporação da imagem de provedor como parte integrante da imagem de ator político. Em oposição ao estigma da incapacidade associado à velhice, este recurso desconstrói a representação social dos idosos como um encargo para a família e para a sociedade reafirmando a capacidade dos mais velhos de prover as despesas relativas à sua própria subsistência e também de contribuir no orçamento familiar e no sustento dos filhos.
Nesse sentido é possível
perceber ambigüidades no discurso sobre a velhice dos trabalhadores das classes
populares. Considerando a precariedade dos benefícios da aposentadoria, por um
lado, reivindica-se o direito individual ao descanso depois de ter realizado uma
trajetória de trabalho e ter contribuído para receber uma aposentadoria digna;
por outro, retratando a si mesmos como provedores, reafirmam os vínculos
intergeracionais e a noção de família com um valor social. A questão da reinserção ou continuidade do trabalho após a aposentadoria é retomada por Clarice Ehlers Peixoto no artigo “Aposentadoria: retorno ao trabalho e solidariedade familiar”, que aponta outras razões para essa decisão além da deterioração dos valores das pensões. Tomando como referência uma categoria social de aposentados com características diversas no que se refere às relações de gênero, trajetória profissional, condições de saúde e valor da aposentadoria, a autora destaca as motivações para a reinserção ou continuidade no mercado de trabalho: a manutenção do padrão de vida, a atitude de solidariedade junto à família e o preenchimento do vazio social advindo da falta de uma atividade sistematizada. Em situação precária, as mulheres exercem, principalmente, atividades domésticas remuneradas e os homens raramente conseguem retornar ao mercado formal de trabalho. Nos casos em que as condições de vida são mais favoráveis – minoria entre os aposentados brasileiros – a maior qualificação profissional proporciona chances maiores de reintegração ao trabalho. Apesar dessa diferença, “evitar o vazio social” é considerado uma razão significativa para transformar a reinserção no trabalho em experiência obrigatória para a maioria dos aposentados. Isso se deve muitas vezes à idade precoce da aposentadoria por tempo de serviço, aliada às melhores condições de saúde e conseqüente prolongamento da vida conquistados pelos avanços da medicina. É grande o número de aposentados que não quer parar de trabalhar, animando o desejo de continuarem ativos por mais tempo, já que para muitos o trabalho é uma referência fundamental desde a infância e adolescência. Além disso, preserva de maneira singular o circuito de convivência e troca entre as gerações. A solidariedade aos membros da família também é vista como fator que impulsiona aposentados a se manterem ou a regressarem ao mercado de trabalho. Nesse caso, o divórcio, o desemprego, a viuvez, acabam sendo situações de reaproximação de pais aposentados com seus filhos e netos, configurando muitas vezes a coabitação entre eles para fazer frente às dificuldades por que passam uns e outros. A autora detalha situações diversas que mostram como a família – mais freqüentemente a casa das mães, viúvas ou divorciadas – se transformou em lugar de suporte econômico e afetivo, onde se realizam reciprocidades múltiplas, favorecendo a interação permanente entre as gerações. Nesse processo, destaca-se a especificidade da condição feminina, explicitando particularidades na velhice dos homens e mulheres. O “paradoxo do envelhecimento feminino” é a questão central do artigo “Processos diferenciais de envelhecimento”, de Claudine Attias-Donfut. A partir de pesquisas realizadas junto à população francesa, a autora tem-se dedicado a analisar os múltiplos aspectos da experiência de envelhecer. Nesta análise, a “revolução da longevidade”, conseqüência do prolongamento da vida, é um fenômeno que afeta especialmente as mulheres. Apesar da intensidade desse fenômeno, o referente para o estudo da velhice é masculino, e as diferenças entre os sexos, acentuadas na velhice, têm sido pouco analisadas. Uma diferença expressiva entre homens e mulheres é a generalização da maior sobrevivência feminina. Se essa diferença pode ser percebida como uma vantagem, em contraposição, as mulheres envelhecem em piores condições que os homens: as pensões de aposentadorias femininas são inferiores; e a viuvez freqüente, decorrente da diferença de idade entre os cônjuges (os homens em geral são mais velhos), acentuam as dificuldades financeiras, sociais e psicológicas das mulheres. Nesse processo, encontra-se mais um aspecto do paradoxo da velhice feminina, uma vez que a aposentadoria proporciona também, na perspectiva da “nova cultura do envelhecimento”, uma possibilidade de um cuidado maior consigo mesmas que as mulheres de mais idade desconheciam. As desvantagens não se limitam às freqüentes diferenças de ordem financeira; são também significativas no campo simbólico da identidade pessoal associada a uma imagem corporal. A valorização da beleza da juventude e a fragilidade da saúde do corpo na velhice, próprias das sociedades ocidentais contemporâneas, transformam a velhice em um problema da medicina e produzem uma dicotomia entre as mulheres, reafirmada pela mídia e pela publicidade. Depois de terem sido cortejadas da adolescência à maturidade, as mulheres de mais idade iniciam o ciclo de vida da velhice como um ciclo de declínio. Essa representação é também reforçada pela perda da capacidade reprodutiva, evidenciando outra particularidade expressiva do processo de envelhecimento dos homens e mulheres. Segundo a autora, outro aspecto do paradoxo da velhice feminina se refere à ruptura no processo de identificação entre as gerações femininas ao longo dos anos 60 – rompimento que contribuiu para o sucesso do movimento de liberação das mulheres nestes anos. A desigualdade entre os sexos e as diferentes gerações de mulheres é mais um componente do paradoxo da velhice feminina. Os estudos dos processos de envelhecimento também abordam formas específicas de sociabilidade intrageracional. É o que pode ser observado no artigo “Sociabilidades possíveis: idosos e tempo geracional”, de Alda Britto da Motta, que investiga a tendência crescente da organização de novas formas de sociabilidade entre pessoas idosas surgidas nas últimas décadas, estabelecendo interações intrageracionais. Segundo pesquisa realizada pela autora com grupos de idosos de diferentes classes sociais e composições de gênero, há uma dinâmica de agregações que permite refletir sobre a premência e o sentido da sociabilidade na vida dos indivíduos. Esta pode ser traduzida numa troca desinteressada, apoiada na estrutura igualitária e democrática dos grupos; num sentimento positivo e na satisfação pessoal como realização de uma necessidade intrínseca de exercer a individualidade. A afirmação social que decorre dessa realização recoloca novamente a questão da convivência, seja em clubes, praças, ou nos conhecidos “programas para terceira idade”, que organizam o consumo de serviços e equipamentos a grupos cada vez mais numerosos. Ainda que diferenças de classes sociais e a pouca interação intergeracional sejam observadas, a autora identifica em todos os casos “um tempo agradavelmente preenchido, companhia, lazer prazeroso, informação e circulação social”. Se há uma crítica em relação à segregação e formação de “guetos” na organização desses grupos, Alda Britto da Motta ressalta que “a rigor, todo grupo de iguais é, de alguma forma, segregado, ou se auto-segrega, por defesa e/ou por estratégia de luta por reconhecimento” ( p.116). O importante é o crescimento de uma consciência crítica e o movimento ativo desse segmento etário na busca de construção de um lugar social, que não raro tem-lhes trazido distração, alegria e mais saúde. A autora aponta ainda as especificidades dessa sociabilidade entre os “velhos jovens” e os “velhos mais velhos” – estes últimos, objeto de escasso interesse dos estudiosos. Por fim, trata da viuvez, com a devida diferenciação de gênero, como condição social peculiar, inesperada e modificadora radical da vida das pessoas, exigindo o estabelecimento de novos arranjos familiares. A análise desenvolvida pelos autores que integram a coletânea deste livro ressalta a necessidade de se considerarem, no contexto das sociedades complexas, as múltiplas possibilidades de apropriações dos valores individualistas para uma melhor compreensão da diversidade de sentidos e significados atribuídos à velhice e ao envelhecer e para um melhor uso, intelectual e político, do conhecimento produzido sobre o processo de envelhecimento. [1] - Publicado pela editora da Fundação Getúlio Vargas em 2004, este livro faz parte da série intitulada Família, Geração e Cultura, coordenada pelas pesquisadoras Clarice Ehlers Peixoto, Maria Luiza Heilborn e Myriam Moraes Lins de Barros. A partir de pesquisas socioantropológicas sobre mudanças nas relações de gênero, aumento da expectativa de vida e redefinições dos vínculos entre sexualidade e família, esta série contribui para divulgar trabalhos sobre família, geração e cultura contemporânea, promovendo o debate e o intercâmbio de estudos elaborados em contextos sociais distintos de modo a incrementar a reflexão sobre as relações familiares contemporâneas. (*) Rosângela Digiovanni é doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas e professora da Universidade Federal do Paraná. ______________________________
Fonte:
http://www.antropologia.com.br/res/res25.htm |