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Natureza vira criação

Matt Ridley, zoólogo e jornalista britânico, retoma debate sobre a essência humana ao desafiar o suposto antagonismo entre a influência dos genes e a do ambiente.

Salvador Nogueira escreve para a ‘Folha de SP’

O livro se chama O Que nos Faz Humanos. Na capa da edição brasileira, um modelo estilizado da molécula de DNA e, em relevo, seqüências de letras A, T, C e G - as famosas representantes das quatro bases com as quais é escrito o código genético.

Numa olhada rápida, parece que a obra irá discorrer sobre quão determinantes os genes são para a definição da natureza e dos comportamentos humanos, certo? Certo. É isso o que a obra faz. Mas não exatamente.

Seu autor, o zoólogo e jornalista britânico Matt Ridley, passa boa parte das suas 414 páginas tentando convencer o leitor de que o velho antagonismo entre natureza e criação (traduzido em inglês pela célebre e charmosa expressão ‘nature versus nurture’) não existe.
E que todos os cientistas, na verdade, pensam em linhas gerais a mesma coisa - que ambos os fatores são importantes.

O que muda entre eles é o quanto percebem seus supostos antagonistas como totalmente exagerados e fora de foco. Os defensores da natureza -a noção de que os genes determinam as características da pessoa- e os da criação -a suposição de que o ambiente é o elemento crucial na composição da personalidade e dos hábitos humanos- vivem reconhecendo a importância do outro lado, mas acusam seus opositores de descartar completamente suas evidências avassaladoras em favor de seu ponto de vista.

A saída, para Ridley, é um grande ‘deixa-disso’ entre os dois grupos. Para ele, não existe ‘nature versus nurture’, e sim ‘nature via nurture’ (por sinal, este é o título original do livro). Em outras palavras, os genes determinam o comportamento das pessoas, desde as características físicas até a personalidade e as aptidões, mas esses elementos, em variados graus, são influenciados pelo ambiente -que altera a maneira como os genes são ativados. A idéia não é nenhuma grande novidade.

Até o próprio Ridley reconhece isso quando agradece a David Lykken, que cunhou a expressão alternativa ‘nature via nurture’, por ter autorizado seu uso como título para o livro. E é difícil para qualquer pessoa de bom senso, mesmo antes de ler o livro, renegar essa postura conciliadora em favor de um extremismo.

Posições dúbias

Depois de lê-lo, entretanto, talvez surja uma crítica ou outra ao que o autor sugere nas entrelinhas. Sua visão de toda a questão é demasiado mecanicista e, em alguns casos, ele presume demais.

Diferente de outro autor famoso que recentemente se aventurou a dissertar sobre a natureza humana num livro de divulgação ampla (o canadense Steven Pinker, em ‘Tábula Rasa’, publicado no Brasil pela Companhia das Letras), Ridley não passa a impressão de que todos os principais problemas a respeito de como funcionam as pessoas estão resolvidos; por outro lado, ele parte do pressuposto de que eles necessariamente o serão, e que a solução está necessariamente ligada ao aprofundamento do entendimento do genoma.

Mesmo a título de brincadeira, Ridley deixa transparecer seu demasiado apreço pela defesa da ‘intencionalidade’ dos genes. ‘Embora em teoria não tenha sentido teleológico falar de um estômago tendo seu propósito, uma vez que o estômago não tem mente, na prática isso faz perfeito sentido desde que você considere o equivalente gramatical da tração nas quatro rodas, a voz passiva: os estômagos foram selecionados para parecer que são equipados com um projeto intencional.

Uma vez que eu tenho aversão à voz passiva, pretendo evitar este problema em todo o livro fingindo que na verdade há um engenheiro teleológico pensando à frente e planejando intencionalmente. (...) Eu simplesmente (o) chamarei de Dispositivo de Organização de Genoma, ou, para resumir, GOD (de ‘genome organising device’). Isso deixará os religiosos satisfeitos e me permitirá usar a voz ativa.’ (‘God’, em inglês, significa ‘Deus’.)

Também em contraste com Pinker, Ridley se preocupa muito mais com os genes do que com os aspectos de desenvolvimento ligados à formação do aparato supostamente inato que faz os seres humanos serem o que são.

O espectro de seu livro é um pouco mais fechado, embora ainda assim mescle de forma agradável elementos de genética, genômica, sociologia, filosofia e história. Os objetivos principais do livro, entretanto, acabam ofuscados pelo brilhantismo literário de Ridley.

Antes de correto, equilibrado e imparcial, ele é sobretudo divertido. Suas anedotas históricas e seu modo de contá-las dão sabor especial ao livro, um que Pinker não consegue imprimir com muita freqüência. E a clareza também joga a favor de ‘O Que nos Faz Humanos’. O que definitivamente joga contra é a organização interna do livro.

O conteúdo, distribuído num prólogo, dez capítulos e um epílogo, raras vezes mostra fluidez nos assuntos tratados, e vez por outra surge a sensação de que Ridley está repetindo a mesma coisa de novo e de novo. Convencimento pela repetição às vezes parece ser uma de suas metas.

O livro supostamente seria norteado por 12 personagens históricos da discussão ‘natureza versus criação’, retratados por Ridley em uma fotografia imaginária ao estilo daquela que reuniu os grandes físicos no início do século 20, com Albert Einstein, Niels Bohr, Max Planck, Erwin Schrödinger, Werner Heisenberg e Paul Dirac.

Os ‘12 barbudos’, como Ridley os chama, escalados para seu acirrado debate sobre a natureza humana e apresentados logo no prólogo, seriam Charles Darwin, Francis Galton, William James, Hugo de Vries, Ivan Pavlov, John Watson, Emil Kraepelin, Sigmund Freud, Emile Durkheim, Franz Boas, Jean Piaget e Konrad Lorenz. Embora todos eles venham a figurar no livro de uma maneira ou de outra ao longo dos dez capítulos seguintes, a forma como aparecem é muitas vezes periférica e um pouco distante do que se poderia supor pela apresentação espetaculosa oferecida logo de cara.

Contradição
Ao final das contas, a sensação é a de que Ridley se declara defensor de uma idéia totalmente equilibrada e imparcial, mas acaba tendendo aos mesmos desequilíbrios argumentativos de muitos dos defensores dos lados ‘natureza’ e ‘criação’.

Ele passa o livro todo dizendo que o determinismo ambiental -a posição mais extrema da teoria da ‘tábula rasa’, segundo a qual a mente é desprovida de elementos inatos e será totalmente moldada pelo ambiente- é uma posição tão perigosa de defender quanto o determinismo genético e deixa a sensação de que não há de fato para onde correr, se alguém quiser preservar de algum modo os elementos mais essenciais do livre-arbítrio. Ao final, entretanto, usa de recursos filosóficos em poucas linhas para justificar que o livre-arbítrio continua defensável.

Ele diz: ‘O livre-arbítrio é inteiramente compatível com um cérebro primorosamente pré-especificado pelos genes e regido por eles’. Mas admite: ‘Não posso fingir que dei uma descrição refinada do livre-arbítrio, porque não acho que exista alguma’.

E arremata: ‘Não há um ‘eu’ dentro de meu cérebro; há somente um conjunto de estados cerebrais em eterna transformação, uma destilação de história, emoção, instinto, experiência e influência de outras pessoas - para não falar no acaso’.

Numa forma sugestiva de sua própria dificuldade de realmente dirimir a polêmica, Ridley encerra com os 12 barbudos com quem começou, sugerindo que nem eles, com sua capacidade extraordinária reunida, possivelmente teriam resolvido a dicotomia entre natureza e criação. ‘Mesmo que tivessem conseguido (...), as hostilidades teriam aparecido com bastante rapidez entre os partidários de diferentes teorias: é da natureza humana.’

Fonte: (Folha de SP, 29/8). JC e-mail 2596, de 30 de Agosto de 2004.