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História, memória, identidade

Delia Catullo Goldfarb pesquisadora mentora

História, memória e identidade são conceitos diferentes, mas intimamente ligados entre si. Quando contamos nossa história, estamos falando de um "saber" sobre nos mesmos, estamos transmitindo aquilo que sabemos sobre os acontecimentos, afetos, sensações e sofrimentos que marcaram nossas vidas. Um saber que tenho sobre o que é meu “eu”.

Para que exista “minha história”, devo me reconhecer nela como um indivíduo, como um protagonista permanente. Por isso dizemos que há coisas que não podem mudar, e outras que devem mudar para construir uma identidade.

História é movimento de mudança permanente. Esse movimento faz com que eu me reconheça, identifique-me com minha história, com a história de minha vida quando a conto para alguém ou quando simplesmente penso nela. Se nada mudasse, eu não teria história para contar, pois todo seria sempre igual. Se você aos 50 é a mesma que aos 15... Que história é essa? Em alguns pontos você é sempre a mesma, você será sempre “Fulana de Tal”, filha de outros “fulanos”. Mas hoje você trabalha nessa revista. Aos 15 talvez fosse muito religiosa, e aos 40 talvez decida mudar de profissão e ser atriz, e mais tarde pode ser uma agnóstica. Isso irá criando subjetividades diferentes, diferentes modos de se colocar no mundo, diferentes formas de pensar e ver a vida, de se relacionar com seu próprio corpo, de se vincular com os outros. Mas em todo esse movimento você vai conservar sua identidade, senão deixaria de ser você. Aí já entraríamos no campo das patologias.

Para ter uma história na qual possamos nos reconhecer como permanentes, devemos ter uma memória que registre esse passado. E aqui já estamos falando de tempo, que é o outro conceito inseparável dos anteriores. A memória une o passado e o presente, e permite que nos projetemos no futuro. Todo esse movimento se une através do desejo. É como o fio que une as contas de um colar, que, se não estivesse ali encadeando as lembranças, seriam contas soltas, não um colar.

Só que tanto o conceito de história quanto o de memória pouco ou nada têm a ver com o conceito de verdade. Na verdade, questionam a verdade. Nesse sentido, diria-se que “o lembrado” é sempre, de certa forma, ficcional, e a história de cada um, uma espécie de narrativa que cada sujeito cria em relação a si mesmo e em que acredita piamente.

A história de um sujeito psíquico é a história de suas emoções, pois é a emoção que marca os fatos mais relevantes de nossas vidas. Aquilo que não nos afeta especialmente é facilmente esquecido, e o que lembramos 10 ou 20 anos mais tarde é produto da emoção com que foi vivido, e pode ser que não tenha nada a ver com o que aconteceu “de verdade”. O lembrado é sempre depois do acontecido, e nesse tempo que passa entre o acontecimento e a recordação a pessoa vai vivendo, vai mudando, vai adquirindo novos códigos de análise das coisas e, em certo ponto, quem lembra não é a mesma pessoa que protagonizou aquele acontecimento agora lembrado. A lembrança vem “só depois” do acontecimento, e esse tempo transcorrido muda muita coisa.  A recordação é real, pois é “nossa” realidade, só nesse sentido é “realmente verdadeiro”.

E isto está ligado ao conceito de construção. Ninguém pode ter absoluta certeza da “veracidade” de suas lembranças. A gente lembra a partir de um estímulo no presente, e então vem a recordação de um tempo passado (pode ter sido ontem), e os dois tempos parecem se juntar em um só (Proust sabia muito bem disso) . Constrói-se algo novo: a lembrança sempre deformada do passado mais os afetos daquele tempo, os afetos de hoje que lembro, o que sou hoje, o que já fui, o que foi me acontecendo nesse tempo todo. Tijolo a tijolo, vou construindo minha história, o que me identifica com o que sou. O que permanece e o que muda.

Mas sobre todo esse processo tem muita influência o mecanismo da repressão que faz que alguns conteúdos não possam ser lembrados. É um mecanismo que manda esquecer aquilo que em determinado momento poderia ser perigoso para a consciência.  A memória existe porque existe o esquecimento. Se não tivéssemos a capacidade de esquecer, ter memória não faria o menor sentido, não precisaríamos dela. E a repressão atua em vários níveis, dependendo do grau de periculosidade do reprimido. Por isso alguns conteúdos são facilmente resgatados do esquecimento, enquanto outros nem sabemos que alguma vez existiram (embora continuem produzindo efeitos desde o inconsciente).

O trauma atua sobre a memória de uma forma muito particular. Quando há uma lembrança traumática, esta se caracteriza por não ser afetada pelas mudanças temporais. É como se retornasse sempre igual, não há elaboração possível, só repetição do mesmo. Como um sonho traumático que se repete sempre igual. É uma memória que insiste na repetição, não na elaboração. Nesse sentido não cria história.