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O curso da vida, o envelhecimento humano e o futuro

Shirley Donizete Prado(*)

Sobre o curso da vida

Com freqüência, encontramos trabalhos que se iniciam por colocações acerca das dificuldades no estabelecimento de limites para a definição da linha divisória entre vida adulta e velhice; também, com a mesma freqüência, informa-se a adoção de um critério – como o referenciado por algum organismo internacional – e o objeto de estudo já pode ser desenvolvido. Este tipo de abordagem caracteriza a existência humana como "ciclos de vidas": fases sucessivas e universais, a saber, infância, adolescência, maturidade e velhice. As idades são agrupadas e postas em seqüência linear, progressiva; cada período com suas características próprias, em modelo aplicável a todas as sociedades como grandes conceitos homogeinizadores.

Debert, entretanto, nos alerta para o fato de que se em todas as sociedades há, de algum modo, a presença de agrupamentos etários e que a consideração das idades para o desenvolvimento de estudos antropológicos é fundamental, essas grades de idade não são as mesmas e guardam significados específicos a cada grupo social, devendo ser entendidas em função do contexto histórico em que foram desenvolvidos.Constitui-se, então, uma crítica ao conceito de ciclos da vida que "(...) estaria impregnado de uma visão essencialista, de caráter a-histórico da vida" (1999, p.37).

Alternativamente, Debert defende a idéia de "curso da vida" como processo gradual que considera aspectos históricos, sociais e individuais para a compreensão dos períodos da vida, numa visão mais complexa e elaborada. Bassit, registra a esse respeito que

(...) o estudo sobre o curso da vida vem se movimentando de uma tendência que divide o estudo do desenvolvimento humano em estágios descontínuos para um firme reconhecimento de qualquer ponto do curso da vida precisa ser analisado dinamicamente, como conseqüência das experiências passadas e das expectativas futuras, e de uma integração entre os limites do contexto social e cultural correspondente (2000, p.218).

Por esses caminhos é possível compreender que nas sociedades tradicionais a divisão da vida em etapas consecutivas e bem demarcadas por limites de idade não se dava como nas sociedades modernas ou como parecem se anunciar para o futuro. Vários autores parecem partilhar desse pensamento, como Debert (1999) e Bassit (2000).

O trabalho de Ariès (1978) sobre a idéia de "infância" como categoria de idade socialmente construída está sempre presente no rol de argumentos. O autor nos fala sobre a inexistência de separações evidentes de grupos etários nas sociedades tradicionais, tais como as entendemos hoje; na França medieval as crianças participavam integralmente do mundo dos adultos, assumindo, muitas vezes e de forma precoce, atividades laborais assim que houvesse possibilidades físicas para tal. A partir de então, inicia-se um processo de construção da infância marcando um gradual distanciamento entre crianças e adultos. Ao longo dos séculos, a noção de infância foi ganhando contornos até ser tratada como questão específica.

Roupas e maneiras adequadas, jogos, brincadeiras e outras atividades passaram a distinguir a criança do adulto. Instituições específicas, como as escolas, foram criadas e encarregadas de atender e preparar a população infantil para a idade adulta (Debert, 1999, p.43).

A mesma autora vale-se de Elias (1990) para confirmar suas perspectivas ao sugerir diferenças importantes entre o comportamento adulto atual e aquele do período medieval: menor controle sobre as emoções e expressões conferia ao adulto uma postura mais solta e espontânea, como uma criança que não carrega culpa ou vergonha. Bassit faz leitura semelhante. "Se no primeiro exemplo as crianças eram ‘mini-adultos’, no segundo os adultos eram como crianças, apesar de sua força física e do potencial para a violência" (2000, p.220).

Um outro exemplo diz respeito à idéia, desenvolvida na França do Século XII, de juventude como uma nova etapa da vida compreendida entre a saída da infância e o casamento: período de viagens e aventuras que se encerrava com os acordos para o matrimônio, substituição dos pais na gerência dos bens e do poder da família. Por essa via, a juventude não correspondia exatamente a uma faixa etária precisa uma vez que a idade para o casamento era muito variável e que, por sua vez, encontrava-se mais associado a fatores de natureza econômica que biológica (Debert, 1999).

Da mesma forma, a "adolescência" teria sido inventada durante o Século XIX nas sociedades ocidentais. Bassit cita o trabalho de Hall, publicado em 1904, sob o título Adolescence, que atribui à vida urbana e sedentária parcela importante na explicação para o interesse sexual acentuado, dificuldades nos relacionamentos intrafamiliares, violência e fortes manifestações emocionais que marcaram a juventude problemática de Londres e Nova York. Importante a participação de Hall no sentido da constituição da adolescência como mais um estágio da vida, em seus problemas e nas propostas de soluções situadas nos campos da biologia e da psicologia: etapa necessária aos seres humanos na aprendizagem do enfrentamento às questões que surgirão na vida adulta referentes ao corpo biológico, ao mundo mental, às regras de convivência, ao consumo, ao trabalho, entre outras.

Também a "terceira idade" é uma criação recente no mundo ocidental. O fenômeno do envelhecimento populacional, marcante no Século XX empurrou a velhice para idades mais avançadas. Os idosos passaram a ser vistos como vítimas da marginalização e da solidão propiciando, a partir da década de 1970, entre outros elementos, a constituição de um conjunto de práticas, instituições e agentes especializados voltados para a definição e o atendimento das necessidades dessa população.

Pode-se depreender desses exemplos que a partir de uma forma de vida em que a idade cronológica tinha menor relevância que, por exemplo, o status familiar, passamos a um outro em que a idade corresponde a uma dimensão fundamental na sociedade. Esse fenômeno pode ser entendido como conseqüente a mudanças estruturais de uma economia feudal de base agrária e doméstica para o capitalismo centrado no mercado de trabalho. Como também é possível considerar o de processo deslocamento de questões atinentes ao domínio familiar e privado para a esfera pública, passando o Estado Moderno a regular o curso da vida por meio de cortes etários com vistas a escolarização, participação no mercado de trabalho e aposentadoria. A esse respeito, Bassit nos diz que

a modernidade, ao estar associada ao desenvolvimento do capitalismo, da ciência e tecnologia e ao nascimento do Estado Moderno, acarreta um maior interesse em registrar, regular e disciplinar a vida das pessoas, quer por meio do desenvolvimento das ciências humanas ou do corpo. A preocupação central na modernidade é periodizar a vida humana, institucionalizando as transições das pessoas da família para a escola ou o trabalho, instituindo a idade ideal para se casar ou se aposentar, entre outras. (...) a lógica da modernidade está fundamentada na uniformização e ‘universalização das transições’ em uma grande variedade de contextos institucionais, bem como uma maior segregação de grupos sociais. Esse processo acarretou uma maior diferenciação no curso de vida, com limites claramente definidos por meio de idades cronológicas pré-definidas, que separam as diferentes fases da vida como a infância, a adolescência, a maturidade e as emergentes meia-idade e velhice. (2000, p.222).

Podemos concluir pelo exposto até agora que nas sociedades pré-modernas ou ditas primitivas, embora a idade estivesse de alguma forma presente como critério de marcação de grupos, não apresentava a mesma relevância que no mundo moderno onde se constituiu um complexo processo de institucionalização do curso de vida que, para além da regulamentação das seqüências etárias, inclui a definição de projetos de vida individuais e coletivos.

Vejamos agora como se pode visualizar o envelhecimento a partir do conceito de curso da vida.

Sobre o curso de vida e o envelhecimento

Para abordar o envelhecimento a partir da perspectiva do curso de vida, seguiremos os passos de Groisman que busca discutir a velhice sob uma dimensão histórica (1999).

Seu trabalho apresenta uma crítica à idéia de que nas sociedades pré-modernas os idosos gozavam de prestígio e eram respeitados pelos demais em sua autoridade e sabedoria: uma "idade de ouro da velhice" ou uma "gerontocracia" derivada da posição de patriarcas em extensas famílias onde os velhos detinham conhecimento e poder. Com o processo de modernização, a industrialização traria o afastamento dos velhos do mundo produtivo, a urbanização resultaria na redução do tamanho da família esgotando o poder patriarcal do idoso, cujo saber não seria mais adequado às necessidades dos jovens escolarizados e mais valorizados e, por fim, a marginalização e a solidão constituiriam, em conjunto, as mazelas de uma nova forma de discriminação social: o "etarismo". Groisman, e Debert (1997) consideram a fragilidade da tese da idade de ouro, tanto pela insuficiência de informações sobre a velhice no passado remoto, quanto pelo fato de que em culturas contemporâneas, como o Japão, a modernização não resultou, necessariamente, em declínio de status para os mais velhos. Tampouco a marginalização e a solidão parecem se constituir no destino inexorável de todos os velhos pois, valendo-se de Katz, o autor indica a constituição de um consenso na literatura mais atual no sentido de que a homogeneidade nunca teria sido a característica da velhice: " (...) velhos sempre foram ricos e pobres, venerados ou denegridos e tratados tanto de forma dura quanto generosa pelas famílias e comunidades, não havendo necessariamente um padrão para isso" (Groisman,1999, p.47).

Um outro aspecto criticado por Groisman na discussão sobre a teoria da modernização corresponde à idéia de que as mudanças advindas nos tempos modernos teriam acarretado aos idosos uma série de problemas, mas que, simultaneamente, teriam trazido a gerontologia para solucioná-los, de modo que a qualidade de vida na velhice estaria garantida. Apresentada dessa forma, a gerontologia corresponderia a uma mera conseqüência natural do aumento proporcional de idosos no mundo.

Em contraposição a essas perspectivas, o autor parte para uma nova abordagem reconhecendo a impossibilidade de um afastamento total à teoria da modernização, mas estabelecendo algumas distinções fundamentais: buscando evitar estereótipos e

(...) tomando o próprio curso da vida como um objeto de investigação histórica, o que abre caminho para uma desconstrução do conceito de velhice. Isto significa pensar que a velhice não é uma variável fixa, que podemos analisar antes e depois da modernização, mas uma realidade culturalmente construída, inclusive pelas disciplinas científicas que a tomaram como alvo (1999, p.48).

Assim, Groisman passa a desenvolver a história da velhice a partir da perspectiva que Katz denomina "curso de vida moderno", ou seja, uma vez considerados os processos econômicos, culturais e burocráticos em sua participação nas diferenciações das idades, a velhice passa a ser entendida como " (...) uma etapa que se diferencia e ganhou contornos próprios em um dado momento histórico, no processo de construção do curso de vida moderno" (1999, p.49).

O período de passagem do Século XIX para o Século XX é indicado como marcante para que as características da velhice moderna possam ser percebidas. E para construir a história da velhice a partir desse período histórico, o autor faz uso das três "tecnologias de diferenciação": o saber geriátrico/gerontológico, a aposentadoria e os asilos de velhos, registrados a seguir.

Em relação a primeira tecnologia de diferenciação, as origens da geriatria se confundem com as transformações da medicina registradas por Foucault: os Séculos XVIII e XIX teriam assistido a substituição da visão da doença ligada às forças cósmicas ou divinas por outra que entende a doença nos tecidos do corpo a partir do exercício da anatomia patológica. No que se refere à geriatria, Bichat, Charcot e Broussais constituiriam as bases formadoras das práticas modernas sobre a velhice: estando a doença nos tecidos e comprometendo em seguida os órgãos e se no envelhecimento há a deterioração dos tecidos, pode-se afirmar que o envelhecimento corresponde a um processo de morte. No início do Século XX, Nasher introduziu o termo "geriatria", o que correspondeu a tentativa de "(...) desenvolvimento de uma base clínica que identificasse de forma separada esta etapa do curso da vida" (Groisman, 1999, p.51).

A partir de então a velhice passou para o domínio científico da medicina, objeto de cuidados especializados.

Já como grupo demográfico, os idosos passaram a se constituir em alvo da atenção de vários outros profissionais. Citando ainda Katz, o autor atribui a Metchnikoff a criação do termo "gerontologia", como campo de estudo médico voltado para o prolongamento da vida. Autores populares, a demografia e outros profissionais também teriam contribuído na construção desta área que já se alargava para além da medicina, produzindo um conhecimento que alicerçou e fortaleceu o seu próprio campo de atuação.

Se a virada do século foi fundamental para um novo delineamento da velhice, é interessante retornar à geriatria para prosseguir na história. Após os trabalhos de Nasher e suas convocações ao investimento na geriatria – relata-nos Groisman (2000), a partir de Haber – vários médicos escreveram artigos sobre a velhice, mas não foram criados cursos nessa especialidade e tampouco os periódicos de prestígio dedicaram-se a publicar textos relevantes sobre o tema. Em contraste com a cirurgia ou a ginecologia, poucos eram os geriatras no início do século. As razões para esse cenário, segundo o autor, estão ligadas às dificuldades em delimitar velhice e doença e às limitações nas prescrições terapêuticas para os problemas da senilidade: as condutas que indicavam dietas, tônicos e atividades ocupacionais não acompanhavam os avanços científicos crescentes nas demais especialidades.

Segue-se um certo vazio de novos acontecimentos nesse campo até aproximadamente a metade do Século XX, quando estudos no campo da sociologia a da antropologia vão divulgar as idéias de idade de ouro da velhice, de associação dos idosos a marginalização e solidão como um todo homogêneo, conforme já referido anteriormente. A partir de então, não só a produção científica sobre a velhice ganhou espaço, mas também os idosos passaram a ser percebidos por políticos, legisladores, mercado de consumo alcançando lugar de destaque nas políticas sociais. Espalha-se, mundo afora, a idéia da terceira idade e brotam a cada dia os centros de convivência para pessoas idosas. Debert nos diz que "Os anos 80 assistiram à transformação da velhice em um tema privilegiado, quando se pensa nos desafios enfrentados pela sociedade contemporânea" (1992, p.33).

Groisman (2000), discutindo a velhice entre o normal e o patológico, registra o intenso crescimento do mercado de trabalho para os geriatras e gerontólogos, a despeito da imensa dificuldade em se estabelecer conceitualmente a velhice e a gerontologia ainda nos dias atuais. Da mesma forma, o autor enfatiza a ampliação do projeto da gerontologia, que em seu crescente ímpeto preventivista, parece propor a disciplinarização da existência humana em sua totalidade.

Quanto a segunda tecnologia de diferenciação, o autor afirma que o surgimento das aposentadorias vincula-se a necessidade de dar respostas sociais aos operários que não poderiam garantir sua sobrevivência através do trabalho já em meados do Século XIX. A associação estabelecida nas décadas que se seguiram entre velhice e invalidez determinou a idade como critério de afastamento da produção baseada na força física. Assim, mesmo que apto fisicamente, ao alcançar a idade da aposentaria, o trabalhador entra para o rol dos "inativos". Por outro lado, funda-se o estatuto do direito à aposentadoria, motivo de novos posicionamentos subjetivos até então impensáveis na história da velhice.

A terceira tecnologia de diferenciação refere-se aos asilos de velhos. Peixoto (1998) menciona a definição espacial específica para os velhos separados dos mendigos nas instituições públicas francesas do final do Século XIX. Segundo Groisman, a transformação as almhouses em instituições para idosos no Estados Unidos é citada por Katz, que também destaca o surgimento da geriatria no interior dessas instituições.

Assim, pela constituição da gerontologia e da geriatria, das aposentadorias e dos asilos para idosos, novas imagens são atribuídas à velhice, que no curso da vida contemporânea vão também ganhando contornos inovadores e formando possibilidades futuras que merecem menção. Alguns estudos sobre o envelhecimento são mencionados a seguir, buscando exemplificar transformações ocorridas e em andamento no processo de envelhecimento, inclusive no Brasil.

Interessante registrar a abordagem de Ariès (1983) sobre a forma como a velhice é vivida por gerações sucessivas ao longo do período que vai do final do século passado até os dias atuais em relação aos setores médios e burgueses na França. Para aqueles que nasceram em meados do Século XIX a velhice trazia a interrupção de atividades inerentes à vida adulta além de uma série de mudanças no estilo de vida e costumes fazendo com que a partir dos 40 ou 50 anos de idade fosse mesmo difícil distinguir a idade das pessoas. Já, para os filhos desta geração, que puderam usufruir as comodidades materiais da vida moderna e que viam nelas possibilidade de ultrapassar os limites da velhice (escadas rolantes, elevadores, carros), não havia razão para o afastamento às posições de prestígio e poder. A geração dos nascidos entre 1910 e 1920 é a que aproveita a terceira idade demandando serviços e profissionais especializados, lazer, turismo. Na Inglaterra, estudos desenvolvidos por Schuller e citados por Debert destacam três grandes tendências: o crescimento das ocupações em meio período, a entrada no mercado de trabalho em idades mais adiantadas e a aposentadoria em idades mais precoces. A partir desses dados, a autora conclui que

a geração atual de idosos seria, talvez, a última a permanecer em turno completo no emprego até a idade da aposentadoria. A associação entre fim do trabalho e entrada na velhice não só deve ser revista, mas exige uma redefinição dos diferentes estágios da vida (1992, p.37).

No Brasil, estudos como os de Barros (1981) sobre idosos inseridos em setores médios da economia sugerem representações favoráveis acerca da velhice. Mattos (1990) estudando idosas de classes populares utilizou o termo "faceirice" para expressar sua identidade feminina e descrever seu entusiasmo na participação em bailes, excursões e outras atividades realizadas em um grupo de convivência. Debert, discutindo os aspectos que marcam a publicidade em suas relações com a velhice, destaca as fortes transformações operadas nas imagens associadas aos velhos: "a personagem de mais idade é também objeto privilegiado para atualização de outros significados como a rebeldia, a contestação e a subversão de padrões sociais, o hedonismo" (1999, p.216). Da mesma forma, nas séries de televisão, a autora afirma que

Expressão do abandono e da solidão nas novelas tem certamente nos velhos um elemento forte, mas eles agora são também apresentados como ativos, capazes de oferecer respostas criativas a um conjunto de mudanças sociais, reciclando identidades anteriores, desenvolvendo novas formas de sociabilidade e de lazer, redefinindo as relações com a família e os parentes" (1999, p.218).

Em síntese, observamos o intenso dinamismo que marca o curso de vida moderno no que se refere ao envelhecimento e, como indica Bassit, também para outros momentos da vida, cabendo destacar, em especial, a dificuldade crescente na definição de uma linha divisória entre as etapas e a interpenetração de umas com as outras. É importante ressaltar que as mudanças na forma de conceber a velhice e as novas possibilidades que vão se abrindo e se institucionalizando para os velhos indicam a construção de um mundo em que o envelhecimento se apresenta cada vez mais heterogêneo. As perspectivas para o futuro parecem apontar para uma diversidade ainda maior e, emblematicamente, confrontando-nos com mitos ancestrais.

Sobre o curso da vida, o envelhecimento e perspectivas para o futuro

Se nas sociedades pré-modernas a idade cronológica não correspondeu a critério de diferenciação de grupos da forma como se pode observar na modernidade – com as idades de ir para a escola, de trabalhar e de se aposentar, entre outras – a atualidade parece indicar um forte dinamismo no interior dos diferentes grupos etários e nas relações que estabelecem entre si. Um cenário de mudanças que coloca algumas questões para a velhice que merecem registro. Debert aponta duas tendências: a primeira considera que, com a extensão do tempo de vida, novos estágios específicos são propostos para a velhice a partir da combinação da idade e da capacidade funcional dos idosos, uma vez que não é possível homogeneizar a população de 65 anos e mais. Assim, os idosos-idosos, ou seja, aqueles com mais de 75 ou 85 anos, considerados associadamente indicadores de independência funcional, colocarão em cheque as estruturas atuais.

(...) na população idosa, é sobretudo o grupo com 85 anos ou mais que terá um crescimento maior nas próximas décadas. As redes de parentesco, pela primeira vez na história, contarão com um número maior de velhos do que de jovens, ao mesmo tempo em que os casados tenderão a ter um número de filhos menor que o número de pais idosos. Para os idosos mais idosos, a pauperização, a passividade e a dependência marcarão a experiência de envelhecimento. As formas inovadoras de moradia e associações são limitadas para esse grupo e a precariedade das políticas públicas a eles destinadas faz com que o peso recaia nos ombros dos filhos e parentes (1992, p.43).

Uma segunda visão, colocada por um ângulo sensivelmente distinto do anterior, considera que a idade como critério de constituição de grupos tende a se dissolver, uma vez que a idéia do idoso como grupo caracterizado pela doença, pelo isolamento e pela pobreza não encontra esteio na literatura atual e também porque os idosos têm se mostrado capazes de criar estilos de vida e de lutar por/pelo reconhecimento de sua individualidade como outros setores da população. Essa abordagem considera seriamente a tendência à perda de relevância da idade cronológica como marcador de grupos e como forma de controle social. Por esse caminho, estaríamos seguindo em direção a uma sociedade marcada pelo unietarismo.

Bassit, discutindo perspectivas para a velhice na pós-modernidade, antevê também a diluição dos grupos estruturados a partir das idades cronológicas, seja por conta da ampliação da influência da cultura, a impregnar de plasticidade as vidas das pessoas, seja pela valorização da juventude engendrada na modernidade que, por suas características intrínsecas de renovação e de exploração das possibilidades de sua própria identidade, termina por trazer movimento para o curso de vida como um todo.

(...) a pós-modernidade está vinculada ao reverso dos processos que contribuíram para a normatização das idades cronológicas e de suas transições. O curso de vida na pós-modernidade será fundamentado na desinstitucionalização e na não-diferenciação, ou seja, na desconstrução de todos os parâmetros utilizados anteriormente para a análise do curso de vida das pessoas; enquanto a modernidade estabeleceu parâmetros claros entre diferentes períodos etários, a pós-modernidade irá obscurecê-los de novo (2000, p.223-224).

A desconstrução do paradigma do curso de vida moderno passa, segundo Bassit, pelo processo de globalização que, ao encurtar espaços e tempos, possibilitou acesso a culturas de outros povos e, conseqüentemente, a redefinição de identidades. Em outras palavras, no lugar de uma identidade previamente desenhada para uma pessoa em um grupo etário, identidades em movimento para a mesma pessoa, que passa a construir sua própria estória, improvisando a cada novo acontecimento, encontrando caminhos a partir de referências de outros grupos sociais, vivenciando uma experiência personalizada. Referindo-se a Gullette, a autora nos diz que seu trabalho

(...) apresenta experiências personificadas por meio de identidades fragmentadas, bem como indica mudanças sociais, culturais, nas relações entre gênero e na concepção do corpo. Gullette, ao nos convidar à luta pela reconstrução do modelo de envelhecimento da sociedade, também nos indica como a pós-modernidade pode operar a desconstrução dos cursos de vida modernos e também sugerir a construção de cursos de vida pós-modernos (2000, p.231).

As análises sobre as relações entre envelhecimento, curso da vida e experiência personificada nos conduzem a um campo importante de debates sobre as perspectivas para o futuro: como moedas, de um lado, a valorização do jovem/juventude e a repulsa ao declínio do corpo e, de outro, a recusa da morte e o desejo de prolongar a vida.

Featherstone e Hepworth (2000) trazem para as discussões acerca do envelhecimento e do curso da vida alguns elementos inovadores, especialmente, sobre o papel da ciência e da tecnologia, que nos dias atuais parecem estar a serviço de uma sociedade que reafirma desejos imemoriais de viver na juventude e de afastamento à degeneração física e à morte. Os autores identificam duas abordagens que, mesmo partilhando de concepções que entendem que a degeneração do corpo não se dá, necessariamente, acompanhada da decadência social e psicológica, contrapõem-se no que diz respeito a incorporação da tecnologia ao curso da vida e ao envelhecimento.

Um ponto de vista considera que os limites do corpo devem ser respeitados e entende que investimentos na preservação da vida de forma mais sintonizada com a natureza possibilitarão realizações para a humanidade. Esse enfoque, que defende um curso de vida natural como maneira mais saudável e apropriada de viver, recebe de Featherstone e Hepworth críticas no sentido de que esta visão "reifica uma determinada imagem cultural do corpo natural" e que a "tecnologia não é algo que está fora da natureza e da cultura" (2000, p. 122). Na defesa da premissa de incorporação da tecnologia, da cultura, do self e do corpo e da natureza na concepção de curso da vida os autores visualizam possibilidades de reconstruções da própria vida.

Alinham-se, em elevado grau, ao ponto de vista que considera os avanços da ciência e da tecnologia como parte integrante de nosso quotidiano, impondo, de forma cada vez mais intensa, modelos de velhice cada vez mais pós-modernos, envolvendo uma diversidade ainda maior de experiências de envelhecimento. Featherstone e Hepworth consideram o crescimento das tecnologias de informação estratégicas e definidoras de outros campos tecnológicos. No que se refere à comunicação, o desenvolvimento da realidade virtual associada a Internet possibilitará a construção de novas formas de contato social, independentes da presença física. No ciberespaço, a identidade poderá corresponder a qualquer imagem desejada, abrindo espaço para uma verdadeira infinidade de selves para uma mesma pessoa, em interações totalmente personalizadas, únicas. Afastando-se do modelo de comunicação de massa, esse tipo de tecnologia propiciará a diluição do modelo de velhice e de envelhecimento presente no curso de vida moderno, o que vale para todos os grupos sociais. Também o acesso a um grande volume de informações particularmente sobre o corpo – o que em geral não está largamente disponível – possibilitará um automonitoramento do corpo e do processo de envelhecimento. Quanto às tecnologias de intervenção no corpo biológico, a cirurgia plástica, os transplantes e implantes, as clonagens e as interconexões com máquinas trarão transformações corporais de grande repercussão sobre os limites do corpo, os selves, o tempo de vida, a vida e a morte. Merece destaque um mecanismo mencionado que parece próprio das relações estabelecidas com o outro e/ou consigo mesmo por meio dos recursos tecnológicos como, por exemplo, o Visual Person Project:

O VPP é uma tecnologia médica que tem usos óbvios para a cirurgia e a pedagogia médica, e sua disponibilidade na Internet também tem o potencial de alterar as percepções leigas do corpo, tanto por afastar-nos do corpo visceral e viscoso como pelo modo como a perpetuação do corpo digital suspende a questão da morte. Isso aponta na direção de um segundo desenvolvimento no qual não se usa a tecnologia de informação para compreender melhor o corpo atual, mas para escapar dele (2000, p.125).

Os autores alertam para a condição desigual de implementação das mudanças tecnológicas; em suas palavras

(...) deveríamos então ser cautelosos ao supor que isso irá, necessariamente, resultar num desenvolvimento linear com uma nova forma unificada de tecnocultura ou curso a vida incorporado adotado por todas as pessoas. Ao contrário, deveríamos estar cientes de que os modos de implementação da mudança tecnológica são necessariamente desiguais e, hoje em dia, dependem das prioridades sociais e econômicas dos governos e corporações (p.127).

Como resposta a essas limitações, sugerem que a própria Internet pode se constituir em instrumento democrático ao propiciar debates e divulgação de informações sobre os usos da tecnologia, direitos e cidadania, observando que a definição do acesso público e dos direitos de propriedade intelectual na Internet são elementos estratégicos na forma de utilização dessa tecnologia por diversos grupos ao longo do curso da vida.

(...) a Internet, como o telefone, auxiliam intercâmbios múltiplos ou entre duas pessoas – tem um potencial democratizante e pode abrir discussões de uma série de assuntos sobre o envelhecimento e o curso da vida, tais como à medicalização do envelhecimento e o desenvolvimento de modelos alternativos de envelhecimento normal (p.127).

As controvérsias nesse aspecto são intensas e a literatura traz muitas contribuições acerca das possibilidades e limites das tecnologias e, em particular, as de informação para o futuro da humanidade (Quéau, 1998, Elhajji, 1999 e Demo, 2000). Uma reflexão, em particular, deve ser destacada: a de Sfez acerca dos projetos e utopias que a ciência e a tecnologia nos colocam na atualidade e que o autor denomina A Grande Saúde (1996).

Crítico dos pós-modernistas, Sfez afirma, com boa dose de ironia, que enquanto estes estão produzindo textos sobre o fim das grandes narrativas, o fim da identidade e a perda dos sentidos, os homens da ciência, encerrados em seus laboratórios estão construindo as novas verdades, as novas garantias do real e as novas certezas... Refere-se aos projetos Genoma, Biosfera II, Artificial Life e Cyborg.

O primeiro, originariamente americano, ganha o mundo ao pretender o mapeamento genético completo da espécie humana, a caminho da eventual eliminação dos defeituosos e do aperfeiçoamento dos demais. Resultado: o homem perfeito, o aumento da duração da vida e, quiçá, a imortalidade. O segundo, uma grande redoma construída no deserto do Arizona onde os biosferianos devem viver sem ajuda externa e contribuir na geração de conhecimento: perspectivas para a vida no espaço depois da explosão do sol ou outra forma de destruição da terra. Em Artificial Life, cérebros sem corpo conquistarão a vida eterna por meio da conexão com computadores. E, finalmente, Cyborg: organismo cibernético puro, sem doenças, sem sexo, sem contradições: o limite ideal das novas utopias. Por meio destes projetos – em andamento efetivamente vigoroso – o autor nos fala da construção de caminhos para a purificação geral do planeta e do homem, retomando os mitos mais ancestrais: Adão, o elixir da juventude, a pedra filosofal, a vida sem dor, sem velhice, sem morte.

Os avanços da ciência e da tecnologia, em suas articulações como grandes interesses econômicos certamente terão peso bastante diferenciado em relação às vozes que se manifestam por um mundo mais natural. A medicina, a engenharia, a informática e a genética crescem vigorosamente constituindo um mundo de inovações para o corpo. Amplos setores da população dão demonstrações de necessidade das intervenções médicas, de forma que, num movimento de convergência, a tecnociência busca corpos que se oferecem para a construção de um futuro desejado. Evidentemente, esse processo não se dá sem percalços, mas parece hegemônico na atualidade. A que preço faremos esse caminho? Que repercussões trará para a velhice? Não há como responder agora com precisão. Mas, certamente, é um caminho em que as velhices serão muito diferentes destas que conhecemos agora.

 Notas

Doutoranda em Saúde Coletiva no Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS-UERJ), Professora Assistente do Departamento de Nutrição Social do Instituto de Nutrição da UERJ, Mestre em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP-FIOCRUZ), Coordenadora do Centro de Referência e Documentação sobre Envelhecimento da Universidade Aberta da Terceira Idade (UnATI-UERJ), Editora da revista Textos sobre Envelhecimento.

 

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Fonte: Textos Envelhecimento v.4 n.8 Rio de Janeiro  2002
Disponível em :
http://www.unati.uerj.br/-Acesso em 08/10/04 às 20 horas