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Ressonância magnética funcional: as funções
do cerébro reveladas por spins nucleares

Roberto Covolan
Dráulio B. de Araújo
Antonio Carlos dos Santos
Fernando Cendes

 A técnica de imagens por ressonância magnética explora um fenômeno quântico bastante curioso, que ocorre em escala nuclear, e que foi descoberto de forma independente por Felix Bloch e Edward Purcell, logo depois da II Guerra Mundial. Essa descoberta lhes valeu o prêmio Nobel de Física de 1952. Porém, os desenvolvimentos que levaram a aplicação desse fenômeno quântico à geração de imagens tomográficas só aconteceram na década de 1970. Recentemente, os principais responsáveis por esses desenvolvimentos, Paul Lauterbur e Peter Mansfield, foram também agraciados com o prêmio Nobel, dessa vez em Medicina e Fisiologia.

Trata-se essencialmente do seguinte: quando a amostra de uma determinada substância (ou mesmo tecido vivo) é colocada sob a ação de um intenso campo magnético, ela adquire uma tênue magnetização, resultante do alinhamento de seus spins nucleares com a direção desse campo. No caso do hidrogênio, por exemplo, cujo núcleo consiste de um único próton, há apenas duas possibilidades de orientação: paralela e anti-paralela. Na condição de equilíbrio térmico com o ambiente, ocorre uma pequena predominância de estados paralelos ao campo magnético externo, de forma que essa magnetização muito sutil se estabelece.

Um pulso de radiofreqüência (RF) lançado sobre a amostra desloca esses spins da direção em que se encontravam predominantemente orientados, levando-os a um estado de energia excitado. Esse pulso de RF é composto por ondas eletromagnéticas semelhantes àquelas emitidas por uma emissora de radio FM, sendo, portanto, totalmente inofensivas. Tendo sido excitados por esse pulso de RF, os spins nucleares tendem a retornar à sua condição inicial, em um estado de energia mais baixa, mas, ao fazerem isso, emitem a energia excedente também na forma de radiação eletromagnética. É essa energia que, ao ser detectada pelo equipamento, permite a formação de imagens anatômicas.

Descobriu-se, porém, há cerca de dez anos, que se poderia utilizar essas imagens para detectar pequenas alterações hemodinâmicas localizadas naquelas regiões predominantemente envolvidas com determinadas funções cerebrais e, assim, produzirem imagens funcionais do cérebro. Essa técnica é conhecida na literatura especializada como fMRI, de functional Magnetic Resonance Imaging e será referida aqui como Ressonância Magnética funcional (RMf). Dentre as técnicas utilizadas em RMf, a mais empregada atualmente baseia-se no chamado efeito Bold. O termo Bold é uma sigla para Blood Oxygenation Level Dependent effect, isso porque esse método baseia-se no nível de oxigenação do sangue. O uso da técnica Bold é tão difundido atualmente que sempre que se fala em RMf, considera-se, implicitamente, que o método seja esse, a não ser que um outro seja especificado.

Embora os mecanismos que conectam ativação neuronal e a fisiologia cerebral sejam ainda objeto de intensa pesquisa, é bem sabido que ativação neuronal leva a um aumento no consumo de ATP (adenosina trifosfato), o que implica em um aumento na demanda por glicose e oxigênio. Para suprir a necessidade desses substratos básicos, ocorre uma elevação do nível de perfusão local, ou seja, um aumento localizado de atividade neuronal leva a um aumento local no volume e no fluxo de sangue . Essas alterações fisiológicas associadas à atividade cerebral acabam sendo fundamentais para a RMf em razão das propriedades magnéticas da hemoglobina (Hb), componente do sangue responsável pelo transporte e difusão de oxigênio no nível celular.

O que ocorre é que, ao atravessar a rede de vasos capilares, a oxihemoglobina (hemoglobina carregando oxigênio) libera O2, transformando-se em desoxihemoglobina (dHb), cujas propriedades paramagnéticas atuam no sentido de reforçar localmente os efeitos do campo magnético externo. Portanto, naquelas regiões do cérebro em que se dá momentaneamente uma atividade neuronal mais elevada, a passagem de hemoglobina do estado HbO2 para dHb é também mais pronunciada, levando a um súbito aumento da concentração local de dHb. Para suprir esse déficit momentâneo de O2, ocorre um aumento no volume e no fluxo sanguíneo locais, o que leva a uma posterior diminuição na concentração de dHb em relação ao nível basal. Essas alterações na concentração de dHb funcionam como um agente de contraste endógeno, permitindo a geração de imagens funcionais. Embora a teoria acima tenha sido aceita (e "praticada") por quase uma década, apenas recentemente a correlação entre o efeito Bold e atividade neuronal foi demonstrada experimentalmente. Isso foi feito através da realização de medidas simultâneas dos sinais de RMf e da atividade elétrica de neurônios do córtex visual do macaco (1). Contudo, detalhes do mecanismo gerador do efeito Bold continuam sendo ainda objeto de intensa investigação (2). A despeito de se tratar de uma técnica incipiente, RMf tem sido aplicada a uma grande variedade de estudos funcionais, que vão desde experimentos tão simples quanto a aposição ritmada do polegar contra o indicador, até investigações neuropsicológicas envolvendo reações emocionais e julgamentos morais (3), passando por estudos ligados a funções cognitivas como linguagem (4) e memória (5).

 A possibilidade de se realizar estudos dessa natureza, de forma não-invasiva e livre de riscos com material radioativo, abre a perspectiva de serem criados novos padrões para se avaliar pessoas com disfunções neuro-psiquiátricas e pacientes neurológicos, sobretudo aqueles passíveis de serem submetidos a intervenções cirúrgicas (6). Além disso, pode-se estudar voluntários sadios para elucidar interessantes aspectos neurofisiológicos cerebrais, como diferentes tipos de memória, o processo de localização espacial e navegação, por exemplo (7). De fato, um dos aspectos de RMf mais voltados para aplicações clínicas, tem sido a avaliação de seu potencial em planejamento cirúrgico. Nesses casos, pacientes candidatos a neurocirurgia são submetidos a testes realizados através de RMf, a fim de mapear as regiões cerebrais responsáveis por funções primárias sensório-motoras ou pela linguagem, memória ou outras funções, visando minimizar os riscos de déficits funcionais pós-operatórios. Classicamente, a localização dessas áreas é obtida através de referenciais anatômicos conhecidos, o que é facilitado pelo uso de técnicas de neuroimagem de alta resolução espacial, como a ressonância magnética. Entretanto, a presença de tumores, malformações artério-venosas (MAV) ou defeitos anatômicos pós-traumáticos, pode deformar a topografia cerebral, resultando em uma conseqüente dificuldade na localização dos limites anatômicos. Além disso, lesões ocorrendo precocemente no desenvolvimento do sistema nervoso central estão ligadas à reorganização funcional cortical por processos de plasticidade neuronal, podendo determinar uma modificação na localização de áreas funcionais.

Para contornar esta limitação, o mapeamento de funções tem sido realizado por meio da estimulação elétrica cortical direta, intra ou extraoperatória. Neurologistas, neurocirurgiões e neuropsicólogos avaliam a localização de regiões funcionais importantes por meio da aplicação de pulsos elétricos focais, de baixa intensidade, na superfície do córtex. Observa-se, então, a reação exibida pelo paciente em resposta ao estímulo específico a uma determinada região cerebral.

Ainda que a localização funcional pela estimulação direta seja precisa, esses métodos são altamente invasivos ou, quando realizados intraoperatoriamente, ficam limitados pelo tempo cirúrgico e, em alguns casos, pela necessidade de se superficializar a anestesia durante o procedimento. Outra limitação é que, algumas vezes, é necessário fazer estimulações do lado contralateral, o que exigiria uma segunda abertura craniana, inviabilizando o procedimento. Assim, o desenvolvimento de métodos não-invasivos é, portanto, bastante desejável.

Essa linha de investigação tem procurado comparar os resultados obtidos através de RMf com métodos tradicionais de mapeamento funcional, como por exemplo eletroencefalograma (EEG), teste de injeção intra-carotídea de amital, estimulação cortical intraoperatória e outros. Embora seja evidente que cada patologia requeira um conjunto próprio de técnicas de diagnóstico, pode-se fazer uma idéia do impacto potencial do uso clínico de RMf considerando, por exemplo, o caso específico da epilepsia.

Para a maioria dos pacientes com epilepsia, o EEG é ainda a técnica mais adequada para se localizar o foco gerador de crises. Esse método consiste, essencialmente, em se registrar as linhas de evolução temporal de potenciais elétricos gerados pela atividade neuronal, que chegam à superfície do escalpo. Anomalias encontradas nos traçados de EEG servem para ajudar a identificar a natureza da patologia e a região mais provável de sua ocorrência. Contudo, para vários pacientes que necessitam de um tratamento cirúrgico para epilepsia de difícil controle é necessário uma série de exames complementares a fim de se localizar, com a maior precisão possível, a chamada zona epileptogênica. Alguns destes exames de natureza ‘invasiva’ trazem riscos e desconforto para os pacientes (por exemplo, implantação de eletrodos intracranianos). No Brasil, só para se ter uma idéia, aproximadamente 1% da população é acometida por epilepsia e 105 a 15% dos pacientes precisam de tratamento cirúrgico.

Por razões como essa, torna-se evidente a necessidade de se buscar técnicas alternativas e RMf é certamente uma das principais.

Atualmente, existe um considerável repertório de estratégias em desenvolvimento que permitem avaliar os sistemas sensorial e motor, além de funções como linguagem e memória, em pacientes com epilepsias de difícil controle com medicamentos e, conseqüentemente, candidatos a intervenção cirúrgica (8). Essa é, hoje, uma das áreas mais promissoras da pesquisa visando aplicações clínicas de RMf. Outras aplicações envolvem a investigação de processos de readaptação cortical secundária a lesões resultantes de patologias como esquizofrenia, doença de Alzheimer, esclerose múltipla, acidentes vasculares cerebrais, além de desordens neuro-psiquiátricas causadas por traumas cerebrais (6).

Do ponto de vista da pesquisa básica e do desenvolvimento tecnológico, os últimos anos também têm sido marcados por importantes realizações nessa área. O trabalho citado acima (1) sobre as bases neurofisiológicas de RMf é um bom exemplo de como esses dois fatores têm sido combinados para produzir resultados novos e fundamentais. E isso aponta para uma das direções em que os métodos de RMf estão sendo aprimorados: aumento de resolução espacial e temporal.

A resolução espacial da RMf, que, tipicamente, situa-se na faixa de 4-6 mm2 em uma imagem plana, é relativamente pobre se comparada às imagens anatômicas convencionais obtidas através de ressonância magnética. Isso ocorre principalmente porque, em experimentos funcionais, há necessidade de se adquirir um número muito grande de imagens num curto período de tempo. Contudo, em trabalhos recentes, já se conseguiu que essa definição fosse reduzida para a escala submilimétrica de 0.25 mm2 em imagens geradas com seres humanos (9) e para incríveis 0.015 mm2 em experimentos realizados com animais (10), permitindo, nesse caso, a observação de pequenas estruturas intracorticais, como vasos sanguíneos minúsculos, que normalmente seriam observáveis apenas com o uso de microfotografias e injeção de contrastes. Para isso, porém, fez-se uso de um procedimento que está longe de poder ser considerado não-invasivo, com a implantação de bobinas de RF, responsáveis pela localização do sinal de RMf, diretamente no crânio dos animais estudados (10).

A despeito do esforço empregado nesse sentido, é bem sabido que a resolução espacial em RMf não pode aumentar indefinidamente, pelo menos aquela baseada em alterações hemodinâmicas, de que estamos tratando aqui. Evidências de que o mecanismo regulador de fluxo sanguíneo local se dá dentro de um domínio submilimétrico (11), próprio de colunas corticais, estabelece esse nível como limite intrínseco em termos de resolução espacial para qualquer método de neuroimagem baseado em hemodinâmica, incluindo obviamente a RMf.

A resolução temporal também é limitada por fatores intrínsecos a essa metodologia. Isso porque as respostas hemodinâmicas evocadas por ativação neuronal apresentam um período de latência que pode chegar a alguns segundos até que atinjam sua amplitude máxima. Contudo, Ogawa (um dos pioneiros em RMf) e colaboradores demonstraram recentemente que é possível planejar experimentos criativos que permitam obter informações na escala de milisegundos (11).

Na esteira dos avanços científicos e tecnológicos mais recentes, o uso de técnicas multimodais surgiu como uma abordagem inovadora, permitindo ampliar as possibilidades de uso da RMf, combinando-o com outros métodos dotados de capacidades complementares. O uso combinado de eeg e RMf é um bom exemplo nesse sentido. As alterações de potenciais elétricos registrados pelo eeg, além de estarem diretamente associadas à atividade neuronal, podem ser medidas com precisão de milisegundos, ao passo que sua resolução espacial é bastante pobre. O RMf, como vimos, é uma medida indireta da atividade neuronal e sem grande resolução temporal, mas permite produzir mapas da atividade cerebral de boa resolução espacial. A aplicação simultânea dessas duas técnicas em um único experimento tem sido vista como uma forma de superar suas limitações intrínsecas e de potencializar suas virtudes.

Um estudo recente (12), realizado com o uso combinado de eeg e RMf, permitiu obter, pela primeira vez, detalhes das respostas hemodinâmicas geradas através do efeito Bold e associadas a alterações da atividade cerebral relacionadas a epilepsia. Observou-se que tais respostas hemodinâmicas apresentam aspectos bastante diferentes do padrão habitual, observado em situações normais. É bem possível que essas respostas hemodinâmicas alteradas venham a se constituir em pistas fundamentais no esforço para se desvendar os mecanismos de base subjacentes a essas disfunções cerebrais. Resultados como esses, além de demais aspectos mencionados anteriormente, permitem vislumbrar um grande potencial para o estudo in vivo da dinâmica cerebral através do uso de RMf, tanto em situações normais como patológicas, o que a torna desde já uma técnica indispensável para o avanço da Neurociência.

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Roberto Covolan é físico e professor do Instituto de Física Gleb Wataghin da Unicamp.
Dráulio Barros de Araújo é físico e professor do Departamento de Física e Matemática da FFCLRP - USP - campus de Ribeirão Preto.
Antonio Carlos dos Santos é médico neuroradiologista e professor da Faculdade de Medicina da USP - campus de Ribeirão Preto.
Fernando Cendes é médico neurologista e professor da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp.

 Referências bibliográficas

1. Logothetis, N.K., Pauls J, Augath M, et al. "Neurophysiological investigation of the basis of the fMRI signal". Nature 412, 150-157 2001.

2. Attwell, D. and Iadecola, C. "The neural basis of functional brain imaging signals". Trends in Neurosciences 25, 621-625 2002.

3. Moll, J., Oliveira-Souza, R., Bramati, I.E., Grafman, J. "Functional networks in emotional moral and nonmoral social judgments". Neuroimage 16, 696-703 2002.

4. Bookheimer, S. "Functional MRI of language: new approaches to understanding the cortical organization of semantic processing". Annual Review of Neuroscience 25, 151-188 2002.

5. Haist, F., Gore, J.B., Mao, H. "Consolidation of human memory over decades revealed by functional magnetic resonance imaging". Nature Neuroscience 4, 1139-1145 2001.

6. Wishart, H.A., Saykin, A.J. e McAllister, T.W. "Functional Magnetic Resonance Imaging: Emerging Clinical Applications". Current Psychiatry Reports 4, 338-345 2002.

7. Araújo, D.B., Salles, A., Tedeschi, W., et al. "Spatiotemporal Patterns of Human Navigation Investigated by MEG and fMRI" In: Proceedings of the 13th International Conference on Biomagnetism, Jena. p.863 – 865. 2002.

8. Binder, J.R., Achten, E., Constable, R.T., et al. "Functional MRI in epilepsy". Epilepsia 43 (Suppl. 1), 51-63 2002.

9. Duong, T.Q., Yacoub, E., Adriany, G., et al. "High-Resolution, Spin-Echo Bold, ad CBF fMRI at 4 and 7 T". Magnetic Resonance in Medicine 48, 589-593 2002.

10. Logothetis, N.K., Merkle, H., Augath, et al. "Ultra High-Resolution fMRI in Monkeys with Implanted RF Coils". Neuron 35, 227-242 2002.

11. Kim, S-G e Ogawa, S. "Insights into new techniques for high resolution functional MRI". Current Opinion in Neurobiology 12, 607-615 2002.

12. Bénar, C-G, Gross, D.W, Wang Y, et al. "The Bold response to interictal epileptiform discharges". Neuroimage 17, 1182-1192 2002 

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Fonte: http://www.comciencia.br, atualizado em 21/10/04
http://www.comciencia.br/200410/noticias/3/neurociencia.htm