Cuidar dos pais
Depois de uma certa idade,
os filhos passam a cuidar dos pais, e nem sempre essa inversão natural é
tranqüila para ambos os lados.Não há receitas de relacionamento, mas aceitar o
fato, sem negligenciar ou superproteger, ajuda a nutrir essa relação tão
delicada.
Difícil alguém dizer: “Foi exatamente no dia 12 de fevereiro de 2001, às 3 horas da tarde”. O mais comum é que, da noite para o dia, a gente acorde com a percepção de que viramos pais... de nossos pais. Claro que esse parto invertido levou anos, décadas talvez, mas só nos damos conta da história quando lembramos os acontecimentos mais recentes dessa convivência. Ligamos três vezes por dia para saber se a mãe tomou o remédio para a pressão, como o médico mandou. Ou então, reservamos uma parte do salário para ajudar nas despesas com o plano de saúde e com a reforma do telhado da velha casa. Ou os convidamos para vir morar com a gente. Ou os deixamos no canto deles, mas com o coração apertado e esta frase de despedida: “Juízo, vocês dois!” Mudança de comportamento Essa inversão entre pais e filhos, porém, vem ganhando esboços diferentes à medida que a população vive mais tempo. Como lembra Clineu Almada, geriatra da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), quem passou dos 65 anos tem grande chance de chegar bem aos 80. É um fenômeno mundial. E uma revolução visceral nos relacionamentos, já que ninguém estava muito preparado para isso. “O cuidado com os pais sempre existiu, só que era mais restrito. Bastava não deixar faltar o básico”, define Clineu. “Mas hoje os mais jovens querem oferecer qualidade de vida ao idoso, pensando nos pais e também na qualidade de vida que desejam para si mesmos agora e no futuro”, diz o geriatra. Porém as necessidades deles não são as nossas. Acostumados a tomar decisões e prover, seja com dinheiro ou um copo de leite quente na cama, os pais nem sempre se sentem à vontade para receber a atenção especial dos filhos. Não querem dar trabalho, como dizem. Também associam o cuidado à perda de autonomia e preferem tocar as coisas do jeito que sempre fizeram. Necessidades respeitadas Olga Beraldo de Oliveira, 81 anos, de São Paulo, sempre esteve preparada para a independência total, mas um problema na perna, que limita seus movimentos, a fez aceitar cuidados do filho único, de 50 anos, que mora no mesmo prédio. O músico Tonho Penhasco, o filho, faz compras, limpa a casa e a leva ao médico ou a outro lugar que pedir. No mais, fica na dele, porque acha importante respeitar o espaço da mãe. “Isso parece saudável para o bem-estar dela”, diz Tonho. A mãe completa e delimita: “Ele cuida das coisas dele, eu das minhas. Só peço ajuda quando acho muito necessário”. Difícil dependência No extremo dessa relação há quem exija atenção 24 horas por dia. Segundo o gerontólogo José Carlos Ferrigno, pesquisador do Sesc/SP. Isso acontece quando a pessoa ainda acredita que envelhecer significa entregar os pontos. Esse sentimento pode ser agravado quando um dos pais falece e, além do envelhecimento, é preciso lidar com a viuvez. A tendência é que surjam relações de dependência ou, se elas existem antes de a idade chegar, fiquem ainda mais acirradas, o que não favorece nenhum dos lados da história. Desde pequena, Heloísa se sentia mãe dos próprios pais. “Eles esperavam raciocínios e decisões que exigiam de mim a postura de adulto”, lembra a artista plástica de 30 anos, paulista. Com a separação do casal, o peso sobre a filha aumentou, pois a mãe passou a ter sérias crises de depressão. Mesmo morando sozinha, Heloísa monitora a vida dos pais, que hoje têm 58 anos. Vendeu o carro para ajudar a mãe a comprar um apartamento, dá conselhos ao pai sobre relacionamentos amorosos e acredita que a dependência vai acentuar com o passar do tempo – a menos que consiga estabelecer certos limites. “Amadureci muito cedo, tenho menos leveza juvenil e só vou reverter essa história se aprender a me poupar”, afirma. Se ela tem irmãos? Sim, dois, um mais velho e outra mais nova. No entanto, assumiu para si a responsabilidade de olhar os pais de perto. Ou foi eleita para isso, não sabe bem. Filhas e filhos Heloisa tem o perfil do cuidador observado no Núcleo de Assistência Domiciliar Interdisciplinar, setor do Hospital das Clínicas de São Paulo que oferece serviços de geriatria. Ali há o nítido predomínio de mulheres na faixa etária dos 30 aos 45 anos cuidando dos pais. “As filhas solteiras ainda podem ser a maioria, mas já não aceitam com tamanha facilidade essa tarefa”, diz a psicóloga Célia Horta, de São Paulo. Ainda mais se investem na carreira e têm filhos. “Dados americanos mostram que os idosos que têm filhas são mais bem cuidados. Os homens têm mais dificuldade em aceitar o envelhecimento e a transformação dos pais em dependentes. Muitos deixam as tarefas para as irmãs, e outros não assumem nenhuma responsabilidade na questão. Só enfrentam quando a morte e a doença chegam para valer. “Isso é muito doloroso para pais e irmãs”, aponta o geriatra Alberto Frisoli Junior, de São Paulo. “Em cada família, a situação acontece de uma forma. Seja como for, o importante é que quem convive com o idoso não fique deprimido com a tarefa. Isso é decisivo para que todos vivam bem.” Cuide primeiro de você O geriatra Clineu Almada acredita que é muito mais fácil atender às necessidades de nossos idosos sem perder de vista as nossas e também as dos filhos, que muitas vezes estão crescendo ao mesmo tempo em que os pais envelhecem. Nesse caso, ser sábio significa não superestimar nem superproteger. Há momentos em que os pais estão à deriva e precisam de atenção intensiva, visitas constantes ou até uma bronca para exageros que podem, inclusive, colocar a vida ou a saúde deles em risco. Mas, muitas vezes, tudo o que querem é um aval para voar, nem que seja pelo quarteirão. Nesse sentido, o escritor mineiro Paulo Mendes Campos tem um texto incisivo: “Nosso amor pela pessoa velha não deve ser uma opressão, uma tirania a inventar cuidados chocantes, temores que machucam. (...) Libertemos os velhos de nossa fatigante bondade”. Memória em dia Conservar a memória em dia é um dos fatores que garantem a autonomia para o idoso. Assim, mesmo que as limitações físicas existam, a vida conserva seu sentido prático e afetivo. Há oficinas, clínicas e grupos que ajudam os mais velhos a melhorar a concentração, focar a atenção e passar a perna no esquecimento. • Oficina da Memória, da Universidade Aberta à Terceira Idade da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Unati/UERJ), tels. (21) 2587 7121, 2587-7199 e 2587 7236, Rio de Janeiro. • Clínica Pro-Vitae, em São Paulo, tel. (11) 3064 6483, São Paulo. Para uma convivência melhor Terapeutas familiares se unem para dizer o seguinte: quando os filhos não se sentem mais filhos, e sim pais dos próprios pais, a primeira coisa a fazer é aceitar que a inversão aconteceu. E que dói um pouco. E que dá trabalho cuidar. Mas que é possível ser uma troca carinhosa e muito rica. “Reconhecer a nova situação, em vez de rejeitá-la, aponta saídas práticas para o relacionamento”, diz a psicóloga Célia Horta. Algumas delas. Não isole seus pais de seus filhos. Em vez disso, junte as gerações sempre que possível. “A troca de experiências ajuda a entender as dificuldades e a admirar as virtudes dos dois lados”, afirma o gerontólogo José Carlos Ferrigno. Os mais velhos transmitem tradição e valores morais. Os mais jovens são exemplos de flexibilidade e trazem novidades. Se seu pai ou sua mãe apresentam lapsos de memória que dificultam a convivência, peça para que anotem fatos, telefones e datas importantes numa agenda, em letras garrafais, e que a carreguem consigo onde forem. Lembre-se: “Todos nós teremos doenças, mas não necessariamente seremos doentes”, diferencia o geriatra Clineu Almada. Em média, depois dos 65 anos a pessoa apresenta de dois a cinco diagnósticos de problemas de saúde. Os mais comuns são hipertensão e distúrbios em ossos e articulações. Se o idoso mantiver as doenças sob controle, provavelmente não terá seqüelas e levará uma vida normal. Portanto, vale acompanhar os exames dos pais e pilotar as consultas, se necessário. Sempre que possível, puxe assunto sobre as últimas notícias, fale sobre os temas preferidos de seus pais e estimule-os a fazer algo de que sempre gostaram. É importante que eles se sintam úteis, por isso peça para que resolvam tarefas para você (levar seu filho ao dentista ou colocar uma carta no correio etc.). Sobre filhos adultos e pais idosos Confira alguns filmes que retratam a inversão de papéis entre pais e filhos ou que passeiam pela questão do envelhecimento nosso e deles. • Meu Pai, uma Lição de Vida, de Gary David Goldberg • As Invasões Bárbaras, de Denys Arcand • Adeus, Lenin!, de Wolfgang Becker • A Arte de Viver, de Ang Lee • Laços de Ternura, de James L. Brooks • A Balada de Narayama, de Shohei Imamura • Como Água para Chocolate, de Alfonso Arauto
Fonte:
Revista Bons fluídos
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