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Demência: uma abordagem psicológica
Por Delia Catullo Goldfarb -
Pesquisadora Mentora
dcg@dme.com.br
Não mais querer, não mais
estimar e não mais criar! Ai, que esse grande cansaço fique sempre longe de
mim!
Assim falava Zaratustra,
Nietzsche
A demência, mais do que uma
doença é um grupo de doenças caracterizadas pela perda progressiva da
memória e das capacidades cognitivas associadas que afetam especialmente as
pessoas idosas. As estatísticas apontam que, em 2015, um bilhão de pessoas
terá mais de 60 anos, representando mais de 15% da população total, e que
mais de 50% das pessoas com mais de 90 anos sofrerão algum tipo de doença
demencial com diferentes graus de dependência. Considerando o envelhecimento
populacional e a constituição e dinâmica da família moderna, numericamente
reduzida em relação à do começo do século XX, comprovamos que esta não terá
mais condições de abrigar e cuidar de seus idosos dependentes, constituindo
um problema de difícil solução para a Saúde Pública e a Previdência Social.
A doença demencial, tanto pelo grau de dependência que provoca, quanto pela
sua prolongada evolução, é uma das mais caras que se tem conhecimento,
exigindo freqüentemente longos anos de institucionalização. Por estes
motivos e pelo sofrimento que provoca aos portadores e seus familiares, é
preciso articular pesquisas e ações que visem uma compreensão teórica e
técnica de suas vicissitudes, com o objetivo de divulgação, prevenção, cura
e assistência.
Ao nos defrontarmos com a questão demencial, pensamos primeiramente numa
deterioração neuronal. Sem querer negar esta constatação do ponto de vista
biológico, não podemos deixar de nos questionar sobre alguns outros
enfoques. A memória apóia-se no sistema neurológico e quando este se
encontra afetado, sem dúvida, a memória, como função neurológica, sofrerá as
conseqüências. Mas a memória tem uma função que excede o biológico,
portanto, não podemos explicar todos os fenômenos que com ela se relacionem
só pela ótica do biológico. A memória tem uma função emocional, afetiva e
relacional. Fundamentalmente, podemos dizer que a memória serve para que o
ser humano tenha uma história. E o que é a história vivencial senão memórias
emocionais acumuladas?
Por outro lado, é evidente que a totalidade de nossa memória não depende de
um mecanismo automático, sabemos que é seletiva, e que esta seletividade
responde a mecanismos psíquicos. Então, é necessário considerar esses
mecanismos - sua formação e funcionamento - para compreendermos melhor os
fenômenos mnémicos.
A literatura médica atribui apenas 15% das demências a causas psicológicas,
mas, uma vez que a etiologia desta doença ainda não foi totalmente
esclarecida, podemos pensar que esta porcentagem pode ser muito maior.
Devemos considerar também que os exames necroscópicos freqüentemente
contrariam os diagnósticos clínicos e não apresentam a deterioração neuronal
esperada para a gravidade da sintomatologia apresentada. Ou seja, nem sempre
existe correspondência entre as lesões orgânicas e as perturbações
psíquicas. Agora, o que é a demência, quais são suas causas, qual a melhor
maneira de combatê-la? São perguntas que todo mundo que se interessa pelas
questões do envelhecimento faz sem que surjam respostas tranqüilizadoras e
operativas.
Observamos atualmente um alto número de diagnósticos de Doença de Alzheimer,
doença degenerativa, progressiva e irreversível. Acredito que muitos casos
diagnosticados como Alzheimer não são tais, e que muitos deles poderiam ser
revertidos se cuidados em suas fases iniciais ou até evitados com uma
conduta terapêutica apropriada antes de sua eclosão.
Quero deixar absolutamente claro que na minha análise não contam as
demências de origem neurológica comprovada, contra as quais, por enquanto,
pouco se pode fazer e que provocam grandes preocupações e intenso trabalho
para a comunidade científica de todo o mundo. Pensemos nos outros casos em
que uma pessoa idosa cai em um estado demencial sem nenhuma alteração
neurológica que assim o justifique. Nestes casos, é legítimo pensar que a
especificidade da demência - onde o sujeito historicamente constituído se
perde - não estaria dada exclusivamente por um déficit orgânico que afeta a
memória como função neurológica, e sim, por um transtorno de identidade que
tem efeito sobre a memória como função historizadora.
Sabemos que o processo de envelhecimento pode ser vivido como um momento de
crescimento e amadurecimento, porém sabemos também que é acompanhado por uma
série de perdas. As perdas formam parte da vida e as sofremos desde que
nascemos. Perdemos nossa condição de sermos o rei da casa, os dentes, a
professora mais querida, a infância, os bichinhos de estimação e até entes
queridos, e assim seguimos ao longo de nossas vidas. A elaboração dessas
perdas nos ensina a crescer e a evoluir sempre, em um processo que jamais se
interrompe. Porém, cada objeto perdido, embora nos provoque uma intensa dor,
depois de um certo tempo de luto normal, pode ser substituído por outro, ou
nos casos em que a perda é insubstituível, como quando morre um ente
querido, essa força que nos impulsiona a viver e que conhecemos pelo nome de
libido, fará com que nos liguemos em outro objeto com o qual possamos ter um
intercâmbio amoroso, no qual possamos fazer um novo investimento, sem
necessidade de esquecer o anterior.
Um dos grandes problemas no envelhecimento é que a substituição de objetos
de investimento libidinal é cada vez mais difícil, não se encontram objetos
substitutivos para os que vão sendo perdidos. Um jovem que estuda ou um
adulto que trabalha têm uma vida social intensa, e ao perder um colega muito
investido, muito amado, logo achará outro com quem se relacionar com
intensidade semelhante.
Para um idoso que está isolado em casa, e a quem nada lhe é exigido, nem que
estude, nem que trabalhe, a quem não se lhe oferecem atividades
comunitárias, culturais etc nas quais possa participar, o mundo dos
intercâmbios possíveis fica reduzido a zero, ele consigo próprio enfrente da
TV. Outro aspecto é que a pessoa muito idosa, além de ter problemas de saúde
que lhe impossibilitam sair e se deslocar, têm um sentimento de finitude
muito forte, e embora este não seja exclusividade dos idosos, é em esta fase
da vida que se faz iniludível, então pode haver uma atitude de retraimento
como forma de se preparar para a morte.
Esta atitude pode se manifestar de diferentes maneiras . Por um lado pode
ser um período da vida utilizado para a reflexão, para botar ordem em
algumas coisas e para serenamente dizer adeus. Muitas culturas têm este tipo
de atitude muito desenvolvida e até regrada culturalmente. O chamamos de
desapego elaborativo. Mas o que acontece com mais freqüência na nossa
cultura é que o idoso se isola, não que mais amar, se descuida, perde o
interesse por qualquer coisa e pode até cortar seus vínculos com o mundo
através do esquecimento mais radical. Uma trágica maneira de perder a
consciência de todo, e voltar a um estado de dependência total de um
cuidador. Perdendo a memória, abandona a identidade que fez dele um sujeito
psíquico e social.
Freqüentemente vemos que um estado demencial se instala no momento de uma
forte depressão, diríamos que interrompe a depressão dolorosa que resultava
insuportável, esquecendo não só de aquilo que a provocou, mas também de tudo
aquilo que poderia colocá-lo em outras situações de sofrimento. É como
dizer: "chega, não quero mais viver" só que não se renuncia á vida biológica
mas á vida psíquica, a demência é o fim do sujeito psíquico.
Este sujeito psíquico é aquele que se forma lentamente durante a vida
biológica, aquele que nasce sem conhecimento de quem é e aos pouco vai
podendo se nomear, dizendo: "Eu sou fulano de tal", "faço isto ou aquilo",
"sou filho de fulano e fulana" "esta é minha história, feita de ganhos e
perdas" e que cria a ilusão de que esse Eu, esse Ego, é permanente, sempre
igual e eterno. Quando no último tramo do caminho, se impõe o sentimento de
finitude, se adquire a consciência de que este ser que eu sou vai morrer
junto com meu corpo, essa idéia é insuportável. Renunciamos melhor à morte
biológica que à morte psíquica. A grande maioria das pessoas manifesta que
preferem morrer a ficar em estado vegetativo. Mas as demências de origem
psíquica podem ser entendidas como um suicídio do psíquico. Observamos
freqüentemente casos de pacientes demenciados que progrediram rapidamente
até este estado a partir de uma depressão, uma forma de perpetuação de um
aparelho psíquico deprimido, mas sem o sofrimento do sentimento de perda
constante, nem a obrigação moral de ter que superar esse transe.
O sujeito demenciado abandona não só os vínculos com os outros, mas também
os vínculos com seu próprio Ego, ele desconhece quem ele é, qual é sua
filiação, qual sua descendência, amigos , papel social, profissão, enfim
tudo. Esquece sua história, essa história feita de vínculos e afetos, e
perde a capacidade de memória que lhe permitiria se recriar novamente como
sujeito psíquico.
Por esta razão é que o fenômeno da reminiscência é tão positivo a pesar de
ser muitas vezes considerado injustamente como sintoma de decrepitude. Ante
o estreitamento do horizonte de futuro e as dificuldades para novos
investimentos, a reminiscência permite o resgate de objetos tidos e perdidos
há muito tempo evitando que estes fiquem abandonados e esquecidos como se
jamais tivessem existido, criando-se um vazio de objetos. O relato é como o
fio que junta as contas de um colar que senão ficariam dispersas e perdidas.
O idoso reminescente realiza uma articulação entre as dimensões do presente
do passado e do futuro, embora só fale do passado, está dizendo como ele se
vê hoje e está falando de seus desejos. O reminescente está falando de sua
história, não de uma história linear e cronológica, está falando de uma
história libidinal, de uma história do desejo, de vínculos, e esta história
pouco importa se é verdadeira ou não no sentido de verdade histórica,
importa que é verdadeira no âmbito do desejo do sujeito. Um velho
reminescente dificilmente se deprima ou se demencie, se tiver uma escuta
adequada para seus relatos.
Seguindo esta línea de pensamento, podemos afirmar que a psicoterapia é uma
forma indispensável de colaboração para um tratamento integral da questão
demencial. As diversas funções terapêuticas poderão se dirigir a restaurar
(embora não seja mais que como prótese) as funções do ego, colocando no
caminho desse sujeito, os sinais da realidade que o ajudem a re-encontrar
seu desejo, achar a lembrança do que precisou ser esquecido e que acabou
provocando a avalanche da memória, e será especialmente produtiva, quando
realizadas nas fases iniciais do processo demencial ou ante as primeiras
dificuldades na elaboração de um luto.
Um bom acompanhamento psicoterápico será também de grande valia ainda nos
casos em que existe alteração neurológica comprovada, pois permitirá acalmar
a angústia provocada pela percepção da perda da memória e todos seus
referenciais e colaborar para uma evolução mais lenta e menos cruenta da
doença. Grupos de apoio para familiares e ainda uma psicoterapia do grupo
familiar, quando necessário, poderão oferecer ao paciente e sua família uma
melhora na qualidade de vida. Por outro lado vários ouros profissionais
poderão ser convocados, especialmente Terapeutas Ocupacionais e
Fisioterapeutas são de grande importância no atendimento necessariamente
multidisciplinar das demências.
Delia Catullo Goldfarb -
Psicanalista,
Mestre
em
Psicologia
Clínica
pela
PUC-SP, Doutora no IP-USP, pesquisadora do
Núcleo
de
Estudo
e
Pesquisa
do Envelhecimento (Nepe), da PUC-SP. Professora de Psicogerontologia. Autora
de
Corpo,
tempo
e envelhecimento,
Casa
do
Psicólogo,
SP, 1998. |
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