|
Pele: nossa principal vestimenta
por Irene Arcuri -
Pesquisadora Mentora
iarcuri@uol.com.br
É incrível pensar na pele como o nosso maior
órgão do sentido. Segundo Montagu, a pele é o nosso mais antigo e sensível
órgão, ele é o nosso primeiro meio de comunicação, porque a pele tem a mesma
origem embrionária do sistema nervoso. A pele é o nosso livro, pois nela
está escrita nossa história. Esse registro se dá como uma memória corporal,
uma vez que ela é o eterno registro de nossas experiências. Algumas peles
são secas, outras oleosas, com espinhas, cravos, rugas, sinais de expressão,
pintas. Cada uma conta uma história. As marcas de nascimento são
características que trazemos de nossos antepassados.
Para Jung, nossa consciência é um produto da percepção e orientação no mundo
externo, que se localiza no cérebro, e sua origem é ectodérmica, sendo que
desde a época dos nossos ancestrais essa consciência acontece através do
relacionamento sensorial com o mundo exterior. Como o relacionamento
sensorial acontece com o mundo exterior? A pele e o sistema nervoso
originam-se da mais externa das três camadas embriônicas, a ectoderme. É
como se o sistema nervoso fosse uma parte escondida da pele, ou o contrário,
a pele é a porção externa do sistema nervoso.
Ser tocado é essencial para o desenvolvimento humano e é um ato instintivo
dos animais mamíferos. Observe como os filhotes de mamíferos são tratados
pela mãe (cães, gatos etc.), sempre são lambidos. O ato de lamber a cria é
fundamental para garantir a sobrevivência. Tanto os animais como os seres
humanos que são privados das lambidas da fêmea ou do carinho da mãe,
desenvolvem doenças. Alguns pesquisadores chegaram à conclusão de que a
criança privada de estimulação tátil se torna desajeitada física e
emocionalmente, não só a nível psicológico como também comportamental.
Sandor desenvolveu um método de relaxamento chamado calatonia, realizado
basicamente através de estímulos táteis, em vários pontos do corpo (um leve
toque sutil na pele). Não descreverei o método, uma vez que ele requer um
treinamento especial para ser compreendido e aplicado, pois constitui uma
metodologia de trabalho em atendimento psicológico. Para que seja possível
entender o seu alcance, relatarei a experiência de Alice (70 anos)*, que
mostra o alcance que a memória inscrita em nossa pele pode ter.
Alice nasceu de parto normal em casa, sua mãe não sabia, mas estava grávida
de gêmeas. Ela nasceu forte, perfeita, mas sua irmã morreu ainda no ventre
materno. Ao realizar sessões de calatonia dentro de sua psicoterapia, Alice
sentiu seus braços se abrirem. Até então ela não havia percebido o seu corpo
tenso, como se usasse uma armadura de ferro medieval que a impedia de
modificar o movimento dos braços.
Depois de experimentar algumas sessões de calatonia, sentiu os braços se
movimentarem lentamente, como se quisessem se abrir, modificando uma postura
que era tão antiga... Quando de repente surgiu a imagem de um bebê
recém-nascido no colo. Ela começou a se lembrar de sua mãe, de sua tia e de
como durante toda a sua vida ela brincava ao dizer que estava cansada, pois
teve de lutar muito para nascer.
Ela sempre se sente culpada pelas coisas que acontece em sua volta com
pessoas queridas, como amigos, filhos, sobrinha etc. O fato de ter
experimentado a morte muito de perto e logo ao nascer talvez lhe tenha dado
a sensação de vitória/derrota simultaneamente. Trabalhamos com a imagem do
bebê e Alice quis representar sua vida intra-uterina.
Alice é uma pessoa especial. Casou-se e teve um bebê que morreu logo após o
seu nascimento. Em seguida, adotou um menino e, posteriormente, uma menina
que veio a falecer. Trabalha em uma comunidade que atende crianças carentes.
Como uma pessoa inteligente e sensível, Alice fez de sua vida um exemplo de
amor ao próximo, de solidariedade, não se fixou nas experiências dolorosas
de sua vida. Mas, no entanto, a dor e o sofrimento ficaram registrados em
seu corpo e a tensão vivida estava ainda aprisionada nele.
As tensões que carregamos em nosso corpo podem ser libertadas de diferentes
maneiras. Algumas vezes as tensões podem ser dissolvidas por cártase, ou
seja, uma descarga que pode ocorrer por tiques, tremores, tosse, gaguice,
choro etc. Sustentar a tensão muscular é um processo desgastante para o
nosso organismo porque ele consome grande quantidade de energia.
Infelizmente, a tensão física que se vive nem sempre é claramente percebida,
por isso os nós que temos no corpo são inconscientes. Os nossos traumas são
de diferentes origens, sendo muitas vezes originados por fatores externos
(críticas destrutivas, ridicularizações etc.) ou mesmo trauma de omissão
quando experimentamos a sensação de abandono na fase de recém-nascido ou
mesmo na infância de um modo geral.
Quando as necessidades básicas não são atendidas, deixam marcas graves com
sérias conseqüências no futuro do ser humano. Atender a essas necessidades
básicas nem sempre é uma tarefa fácil, pois requer uma total atenção por
parte dos pais ou do cuidador, pois elas são primitivas - referem-se à
satisfação dos instintos -, envolvendo além da alimentação, sono, a
necessidade de ser segurado, acariciado, confortado, encorajado em
brincadeiras e, principalmente, ser o “centro da atenção humana”, para ter
garantido o sentido de existir.
Práticas que promovem um contato físico nutridor podem ser uma forma
competente de curar os traumas dessa ordem. As terapias não-verbais, como
arte terapia, terapia corporal ou as técnicas expressivas coligadas ao
trabalho corporal, podem ajudar muito no tratamento de importantes desordens
emocionais e psicossomáticas, principalmente aqueles que envolvem bloqueios
de energia, emocional e física, requerendo uma abordagem vivencial.
Depois de ter vivido a experiência de relaxamento, Alice fez um desenho que
retrata sua sensação experimentada na vida intra-uterina. A imagem pode ser
um canal expressivo bem importante, pois quando se trata de traumas ou
experiências vividos em épocas em que não havia a linguagem (recém-nascidos,
trauma de infância), essa forma de comunicação não-verbal é eficiente.
Segundo Grof, psiquiatra russo, para a neurociência ocidental, a consciência
é um produto dos processos fisiológicos no cérebro e, assim, ela depende
decisivamente do corpo. Pouquíssimas pessoas, inclusive os próprios
cientistas, percebem que não temos absolutamente qualquer prova de que a
consciência seja realmente produzida pelo cérebro e que não temos a mais
remota noção de como algo assim poderia acontecer. Apesar disso, essa
suposição metafísica básica permanece sendo um dos principais mitos que
orientam a ciência materialista ocidental e tem uma profunda influência
sobre toda a nossa sociedade.
A suposição de que a criança não está consciente no estresse emocional e
físico que envolve o nascimento, não deixando qualquer registro em seu
cérebro, contradiz as observações clínicas, o bom senso e a lógica
elementar. A negação da possibilidade da memória do nascimento, baseada no
fato de que o córtex do recém-nascido não está totalmente mielinizado, é
particularmente absurda quando consideramos que a capacidade de memória
existe em muitas formas de vida superior que não tem córtex.
Grof diz que determinadas formas primitivas de memória protoplasmática
existem em organismos unicelulares. O parto biológico é o trauma mais
profundo de nossas vidas, ele fica gravado em nossa memória em seus mínimos
detalhes, até o nível celular e tem um efeito profundo sobre o nosso
desenvolvimento psicológico.
Alice, ao descrever sua experiência com o relaxamento (calatonia) e desenhar
a mandala (fig. 01), pôde rever e reorganizar sua experiência dessa fase da
vida, resgatando essa memória tão antiga.
figura 01 – Imagem gerada após sessão de
técnicas expressivas coligadas ao trabalho corporal – Alice diante do
nascimento
Essas memórias podem ajudar na compreensão de
dinamismos psíquicos, na autodefinição de nossas atitudes em relação ao
mundo, que podem ter sido contaminadas por lembranças desse momento de
vulnerabilidade, inadequação, pois podemos nascer anatomicamente, mas
emocionalmente não nos damos conta desse fato. O nascimento é uma doença da
qual nunca nos curamos, pois o parto finaliza brutalmente a existência
intra-uterina. Morremos como organismo aquático e nascemos como uma forma de
vida fisiológica e anatomicamente diferente, que respira ar.
Como feto estamos totalmente confinados durante o processo de nascimento e
não temos como expressar nossas fortes emoções e nem como reagir às intensas
reações físicas aí envolvidas, a memória desse evento permanece sem ser
digerida e assimilada psicologicamente. Claro que, posteriormente, outras
experiências em nossas vidas vão nos moldando de forma a não nos fixarmos
nos aspectos difíceis da vida, como Alice mesmo o fez, mas é importante
pensar que ainda assim, nos recônditos da memória há experiência de vida.
A prática de relaxamento, meditação e outros recursos que possibilitem a
ampliação da consciência pode levar a um desenvolvimento maior, caso
contrário, ficamos vivendo apenas no limite da nossa pele. Allan Watts chama
essa experiência limitante de ego encapsulado na pele, ou seja, ter uma
percepção restrita apenas à fisiologia dos nossos órgãos dos sentidos e ter
as características físicas do ambiente.
figura 02 – Imagem gerada após sessão de
técnicas expressivas coligadas ao trabalho corporal – Alice e sua percepção
do corpo.
Irene Arcuri é Psicóloga Clínica, Arte
Terapeuta, mestre em Gerontologia, doutoranda em Psicologia Clínica
pela PUC-SP.
* Nome Fictício
Referências
ALESSANDRINI, C. D. (org) et al. Tramas
criadoras na construção “do ser si mesmo” São Paulo: Casa do Psicólogo,
1999.
ANCONA-LOPEZ, M. Psicologia e Religião: Recursos para a construção do
conhecimento. In: Revista Estudos de Psicologia, PUC - Campinas, v.19, n 2,
p. 78-75, maio/agosto 2002.
ARCURI, I.P.G. Memória Corporal – O Simbolismo do Corpo na Trajetória da
Vida. Dissertação de mestrado, PUC-SP, 2002.
CAPRA, F. Sabedoria incomum. São Paulo: Cultrix 1995.
A teia da vida. São Paulo: Cultrix, 1996.
O tao da física. São Paulo: Cultrix, 1997.
CIORNAI, S. Arte-terapia: o resgate da criatividade na vida. In: CARVALHO,
M. M. A arte cura? Campinas, SP: Editorial Psy II.
FARAH, R. M. Integração psicofísica. São Paulo: Robe Editorial, l995.
GAIARSA, J. A. Respiração, angústia e renascimento. São Paulo: Ícone, l994.
GOUVEIA, A. P. Sol da terra: o uso do barro em psicoterapia. São Paulo:
Summus, 1989.
GROF, S. Além do cérebro. São Paulo: Mcgraw- Hill, 1987.
Emergência espiritual. São Paulo: Cultrix, l989.
Psicologia do futuro. Niterói-RJ: Heresis; 2000.
IYENGAR, B.K.S. A luz da Yoga. São Paulo: Cultrix, 1986..
KANDINSKY, W. Ponto, linha, plano. São Paulo: Martins Fontes, l970.-
_______________ Do Espiritual na Arte. Lisboa – Portugal: Publicações Dom
Quixote, l987.
JUNG, C.G. A prática da psicoterapia. Petrópolis-RJ:Vozes, 1984.
-___________Definições: Compensação e Enantiodromia. In Tipos piscológicos.
OC.Rio de Janeiro: Zahar, 1976. par.693-5,708-9.
LELOUP, J.Y. O corpo e seus símbolos: uma antropologia essencial.
Petrópolis-R.J: Vozes, 1988.
MCNEELY, D. Tocar. São Paulo: Editora Cultrix Ltda, l994.
MIRANDA, C. Hatha Yoga, a b c do Yoga. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1979.
SANDOR, P. Técnicas de Relaxamento. São Paulo: Vetor, 1982.
|
|