|
Educação, memória e envelhecimento
por Vera Brandão -
Pesquisadora Mentora
veratordino@hotmail.com
O tema proposto para esta
reflexão tem sido objeto de nossa prática e estudos teóricos nos últimos dez
anos e parte de uma pesquisa em andamento no Grupo de Estudos da Memória.
Falar sobre os temas Memória e Envelhecimento se pressupõem não só um saber
já estabelecido, mas implica, também, uma abordagem subjetiva. Dizemos isto
porque é muito difícil discorrer sobre estes temas sem esbarrarmos nos
conteúdos emocionais que os envolvem. Acrescentar a estes dois temas
complexos a Educação é um desafio que vimos tentando enfrentar.
Vale aqui alguns esclarecimentos a respeito da abordagem a que me proponho.
Ao falar sobre a Memória faço, para fins didáticos, uma distinção entre
memória cognitiva e memória afetiva. Ambas estão entrelaçadas e são objeto
de estudos científicos profundos (em diferentes áreas do conhecimento) onde
se observam todos os mecanismos de registro das memórias de curto e longo
prazo, as diferentes áreas do cérebro estimuladas, as conexões possíveis
entre elas e seu processamento, seu comprometimento, etc.
Um estudo constante e de longo prazo desafia os pesquisadores que sentem-se,
ainda, muito longe de conclusões a respeito de tema tão complexo. Diz
Izquierdo (1998:98):
Conhecer um ou todos os tijolos em detalhe, sua manufatura, composição
química, dimensões precisas, posição final na construção, etc, nada nos dirá
sobre a catedral (ou palácio ou caverna) a qual pertencem. Assim nos
encontramos os pesquisadores da memória hoje em dia: com a química dos
tijolos na mão, com os detalhes da arquitetura na mesa e com aquilo que
sentimos ao entrar em Westminster ou Toledo, em Versailles ou em Schoenbrunn,
ou nas cavernas de Malorca ou Minas Gerais: admiração profunda por algo que
ultrapassa nossa compreensão real.
A abordagem que proponho nesta reflexão privilegia a trajetória do
pesquisador/professor na construção de um saber e suas competências.
Trajetória entendida aqui como percurso e vida, construído a partir das
escolhas, com seus erros e acertos e, logicamente, a pratica disto
resultante. É evidente que a contextualização sócio-histórica tem aí papel
fundamental.
Ao se falar em análise da trajetória, fala-se, necessariamente, em memória
como instrumento de resgate. E é a memória afetiva que vai ser acionada
neste exercício, daí nossa preocupação na distinção feita acima. É no
processo de auto-análise que me percebo e percebo o grupo no qual me insiro
seja como pesquisador seja como docente, mas principalmente como indivíduo.
O grupo ao qual pertenço também tem uma trajetória, com escolhas, dúvidas,
angústias, questões teórico/práticas.
É neste contexto que acreditamos poder articular nossa discussão abordando
os temas Educação, Memória e Envelhecimento. Este destaque para a trajetória
tem como base às leituras de Pineau (2000), Fazenda (2000) e Josso (1999)
que procuram valorizar as histórias de vida como base para reflexão e
possibilidade de re-construção dos sujeitos pesquisados e pesquisadores.
Estas propostas se esclarecem nas palavras de Josso (1999:13) quando diz:
"... uma sensibilidade para a história do aprendiz e de sua relação com o
conhecimento, enquanto as formações contínuas abrem-se ao reconhecimento da
experiência".
Amplio esta questão já que tenho "interesse biográfico para abordar a
formação do ponto de vista do sujeito aprendiz" (idem) construindo a partir
daí uma relação de troca, onde os conteúdos teóricos são colocados para
serem discutidos entre educador/educando procurando estabelecer uma inter
relação, que vejo como fundamental na formação de um novo olhar, dentro de
uma perspectiva de uma mudança de paradigma e construção de uma prática
interdisciplinar, especialmente enfocando aqui o tema do Envelhecimento.
A trajetória está ligada a um projeto de vida que fica explicitada numa ação
de busca do saber que se funda na teoria disciplinar, na prática já
existente e se instrumentaliza na dinâmica da construção e finaliza na ação.
Utilizando a metáfora do espaço psicodramático temos uma cena onde são
colocados os temas a serem protagonizados. Os protagonistas são os
profissionais com seus saberes disciplinares e experiências cotidianas, que
se colocam à luz para "ver" (de dentro e de fora) e a partir deste olhar
construir juntos um "novo" conhecimento/ saber; uma nova perspectiva para
abordar as problemáticas propostas.
Este exercício não deve nos levar ao conhecimento fechado, ao saber
definitivo, mas deve ser proposto como um constante devir já que ele mesmo
pode ser relançado para observação, discussão, revisão. É um movimento
dialético de (re)construção... Gostaríamos de esclarecer que usamos as duas
noções de conhecimento e saber como proposto por Fourez (2000:3) que diz:
"os conhecimentos-organizados segundo a personalidade e o corpo de cada
individuo; e os saberes, que seriam conhecimentos ou as representações,
socializadas, instituídas e padronizadas".
Temos tentado aplicar estas premissas metodológicas com os grupos de
profissionais das áreas de saúde e educação que trabalham com idosos em
várias instituições: asilos, casas de repouso, hospitais, grupos de
convivência e universidades abertas. Iniciamos este trabalho em 1994 até
1996 resgatando a memória em grupos de uma universidade aberta da zona sul
de São Paulo num projeto chamado Memória e Cultura. Este evoluiu para um
outro projeto de Oficinas de Memória. Estes projetos tiveram um total de
participação de 100 pessoas com idades que iam de 45 a 86 anos.O bom
resultado deste trabalho para os idosos levou-nos a implantação de um
projeto piloto, em 1997, a convite da prof. Suzana Medeiros no Núcleo de
Estudos e Pesquisas do Envelhecimento (NEPE-PUC-SP).
Este grupo reuniu-se durante o ano de 1997 com encontros mensais, com oito
participantes com idades entre 47 a 71 anos e grau de escolaridade variável.
Esta oficina visava um trabalho direto com a comunidade, abrindo espaço para
repensar o projeto de vida, analisando a trajetória e, através da memória,
reconstruir a história individual e coletiva. Acreditamos que ao refletirmos
sobre nossa trajetória, com o olhar atualizado de quem somos hoje, podemos
preparar projetos futuros.
Dentro desta perspectiva utilizamos o conceito de memória positiva, ou seja,
não a reminiscência amarga ou saudosista do "bom tempo que passou", tampouco
das tristezas por "aquilo que não fiz", não realizei". Propomos uma reflexão
sobre a trajetória para então pensar no que ainda posso e desejo fazer", não
da mesma maneira, porque nós e nossos planos mudaram, mas de um jeito novo,
partindo do agora, com clareza de novas possibilidades e a maturidade da
experiência. Levar em conta os desejos, sonhos... Sempre um novo projeto.
A soma destas experiências apontou-nos para um outro caminho: a
possibilidade de um projeto dirigido aos profissionais que trabalham com os
indivíduos idosos e que abordasse os aspectos teóricos dos estudos da
Memória com a prática de cada um, explicitada na vivência das Oficinas. Ler
os textos teóricos, refletir, discutir. Fazer uma ligação com a atuação
prática trazendo à discussão do grupo. Ser escutada e escutar. Repensar o
sentido do trabalho/vida. Ressignificar. Escrever sobre esta experiência.
Este tem o sido o processo de trabalho como possibilidade de construir este
novo olhar sobre o envelhecimento atendendo os objetivos do Programa de
Estudos Pós-Graduados em Gerontologia da Puc-SP. Nosso trabalho no projeto
Oficina de Memória - Teoria e Prática, procura de uma perspectiva
muldisciplinar, já que atuamos junto a profissionais de áreas diferentes,
chegar por meio da prática e da ação educativa, a alcançar a
interdisciplinaridade. Seguimos a proposição de Fazenda (2001:14) que pensa
a interdisciplinaridade como uma ação em movimento, porém sempre
contextualizada porque: "Conhecer o lugar de onde se fala é a condição
fundamental para quem necessita investigar como proceder ou desenvolver uma
atitude interdisciplinar na prática cotidiana".
Diz ainda:
A trilha interdisciplinar caminha do ator ao autor de uma história vivida,
de uma ação conscientemente exercida a uma elaboração teórica arduamente
construída. Tão importante quanto o produto de uma ação exercida é o
processo e, mais que o processo, é necessário pesquisar o movimento
desenhado pela ação exercida -somente com a pesquisa dos movimentos das
ações exercidas poderemos delinear seus contornos e seus perfis. Explicitar
o movimento das ações educacionalmente exercidas é, sobretudo, intuir-lhes o
sentido da vida que as contempla, o símbolo que as nutre e conduz- para
tanto torna-se indispensável dos registros das ações a ser pesquisadas(...).
(idem15)
Considerando os saberes constituídos (Fourez) como a Educação, a
Gerontologia e a Memória não só a partir das reflexões propostas nas
disciplinas que compõe estas três esferas do saber, tentamos também colocar
em contato as interfaces existentes entre elas e o conhecimento acumulado e
articulado pelos profissionais das diferentes áreas que tem procurado a
Oficina. Complementando voltamos a Fourez (2000:4) que fala da abordagem
disciplinar que pergunta "sobre o que se trata?", mas que direciona a
resposta para a disciplina enquanto a interdisciplinaridade "procura
responder, tendo em vista a singularidade e especificidade, leva em
consideração a situação em toda a sua complexidade (...)valoriza o ponto de
vista do sujeito que deve ter conhecimento sobre o assunto".
No trabalho realizado nas Oficinas de Memória utilizamos estes pressupostos
teóricos na tentativa de propor a construção de um "novo olhar" e de um
saber ampliado a partir das reflexões teórico-práticas sobre o
Envelhecimento usando como vetor também a memória afetiva. Sabemos das
discussões a respeito dos problemas que permeiam estas questões, mas, se
estivermos atentos podemos tornar a emoção e a subjetividade aliadas aos
saberes disciplinares, para num espaço aberto de troca, enfrentarmos com
seriedade e competência o desafio a que nos propomos.
Referências
BRANDÃO, Vera Maria A. Tordino . Memória, Cultura, Projeto de Vida.
Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais PUC/SP), 1999 (mimeo).
FAZENDA, Ivani Catarina Arantes (org.). Dicionário em Construção:
Interdisciplinaridade. São Paulo, Cortez, 2001
FOUREZ, Gerard .Fondements Épistémologiques pour l'Interdiscplinarité.
(texto provisório de comunicação no Congresso da AMSE - Sherbrooke-2000)
IZQUIERDO, Ivan. Tempo e Tolerância. Rio Grande do Sul, Sulina, 1998
JOSSO, Marie- Christine. História de Vida e Projeto. São Paulo, Educação e
Pesquisa Revista da Faculdade de Educação USP, Jul/Dez, 1999
PINEAU, Gaston. "O sentido do sentido" in Nicolescu Bassarab et al. Educação
e Transdisciplinaridade. Brasília, Unesco, 2000
Vera Brandão é
Pedagoga,
mestre e
doutora
em
Ciências
Sociais
pela
PUC-SP. Pesquisadora do
Núcleo de
Estudo e
Pesquisa
do Envelhecimento (NEPE) da PUC-SP e do Grupo de Estudos da Memória.
Professora de
Oficinas
de
Memórias
Biográficas.
|
|